O corcunda e o rábula

O corcunda e o rábula

Alcy Cheuiche*

O corcunda mais famoso da história, Quasímodo, de "O Corcunda de Notre-Dame", em montagem teatral

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À memória de meu pai, que nos contava esta história, quando crianças.


Mathias nasceu corcunda. Seu pai, maquinista de trem, embora inconformado, quase não o via, pois passava a maior parte do tempo fora de casa. Da mãe, porém, recebeu redobrada atenção e carinho, embora ela tivesse mais oito filhos para criar. 
Assim, o menino até que não sofreu tanto antes de chegar na escola. Ali, desde o primeiro dia, a não ser na hora da chamada, todos, até muitos professores, só o conheciam como o Corcunda. Ele aceitou passivamente o apelido, até que começou a sentir-se homem, a encantar-se com as colegas nas aulas de educação física. Então, graças a seus punhos de boxeador, obrigou muito guri desaforado a chamá-lo de Mathias. Alguns tentaram voltar ao apelido quando a professora de Português e Literatura lhes resumiu com entusiasmo o famoso livro de Victor Hugo, “O Corcunda de Notre-Dame”. Diziam até que acariciar o local da corcunda dava sorte, e Mathias deixou que algumas meninas fizessem isso, muito em particular, é claro. Aos vinte anos, apaixonou-se por Clarinha, uma normalista do Instituto de Educação. E a jovem correspondeu a seus sentimentos.
Estamos em Porto Alegre, no início do ano de 1941, antes da famosa enchente. Mathias, com vinte e dois anos, formado Técnico em Contabilidade, conseguiu um bom emprego na fábrica de chocolates Neugebauer e pediu Clarinha em casamento. A moça, já lecionando no curso primário, aceitou o pedido. Juntando os dois salários, poderão começar sua vida de casados sem nenhum problema.
Pois, numa tarde de sábado, Clarinha e Mathias estão caminhando pela Rua da Praia, em direção ao Cine Guarani, quando um rapaz, dentro de um carro conversível estacionado na beira da calçada, grita-lhe com deboche:
- Aí, Corcunda! Até que conseguinte uma namorada bonita!
Mathias reconhece o antigo colega de escola, deixa Clarinha diante de uma vitrine e vai até ele:
- Se tu me chamares assim de novo, eu vou te quebrar a cara!
- O que é isso, Corcunda? Pensa que eu sou burro? Tchauzinho, Corcunda! Corcunda! Corcunda!
E, antes que Mathias consiga pegá-lo, liga o carro e arranca pela rua, arriscando atropelar algumas pessoas.
Clarinha tenta acalmar Mathias, mas o rapaz, na semana seguinte, consegue comprar um revólver de segunda mão. E, no outro sábado, no mesmo lugar da Rua da Praia, a cena se repete. O tal colega, agora já com o motor ligado, pronto para fugir, grita-lhe:
- E aí, Corcunda? Vais fabricar outros corcundinhas? Corcunda! Corcunda! Corcunda!
Quando Mathias atravessa a rua, o carro começa a movimentar-se, mas é tarde demais. Ele saca o revólver e acerta um tiro no peito do motorista.
Preso em flagrante e levado para o Cadeião, ali ao lado do Gasômetro, Mathias logo fica sabendo que o crime tivera grande repercussão. O pai do rapaz assassinado, além de riquíssimo, é deputado estadual. E está usando muito dinheiro e influência para acelerar o processo e fazer o Corcunda bandido apodrecer na cadeia. E o pior: nenhum advogado criminalista aceita defendê-lo com o pouco dinheiro de que dispõe para contratá-los. Até que, finalmente, um velho rábula, parente longe da Clarinha, vem visitá-lo na cadeia. Para quem não sabe, rábula é como se chamavam as pessoas que advogavam sem diploma. 
O velho, com longos cabelos grisalhos despenteados e olhos empapuçados de borracho, ouve atentamente o relato de Mathias e lhe diz, sem mais delongas:
- Fica tranquilo. Já sei como fazer os jurados te absolverem.
Concluído o processo de instrução, Mathias é levado a julgamento perante o tribunal do júri. Devido ao grande destaque na imprensa, muita gente ocupa o recinto, apostando apenas em quantos anos de cadeia pegará o Corcunda… E, terminada a acusação do promotor público, um verdadeiro massacre técnico e emocional, todos os olhares convergem para o velho rábula, que se levanta lentamente, ajeita a gravata torta, assoa o nariz e limpa os olhos empapuçados com um lenço ainda mais amarfalhado do que seu terno, e começa a falar com voz arrastada:
- Ex…celen…tíssimo e… Meri…tíssimo Senhor Juiz… de Direito.
Para alguns segundos, engole um soluço e repete:
- Ex…celen…tíssimo e Meri…tíssimo Senhor Juiz… de Direito.
Ante o público estupefato e o rosto do juiz que já está começando a ficar vermelho, diz novamente:
- Ex…celen…tíssimo e Meri…tíssimo Senhor Juiz… de Direito… Ex…celen…tíssimo e…
Antes que complete novamente a saudação, o juiz togado ergue-se e lhe aponta um dedo acusador:
- Jamais deixarei que alguém me ofenda e desmoralize, principalmente no exercício da minha função! Se repetir essa frase mais uma vez, eu farei com que seja retirado deste recinto por incapacidade mental ou visível embriaguez!
É quando o velho rábula encara os jurados, sem gaguejar nem parecendo embriagado, e lhes diz:
- Por três vezes, eu saudei o senhor Juiz de Direito, utilizando os termos Excelentíssimo e Meritíssimo. Mesmo assim, ele ofendeu-se de tal forma, ao ponto de ameaçar retirar-me à força deste tribunal… Imaginem pois, senhores jurados, o que foi para o réu escutar desde criança o termo Corcunda, dito com desprezo, todos os dias. E, finalmente, já homem feito, quando passava pela rua movimentada ao lado de sua noiva, ouvir novamente essa alcunha: Corcunda! Corcunda! Corcunda! Dito isso em duas ocasiões por um covarde prestes a fugir em seu automóvel, arriscando a atropelar pessoas pela rua. Agiu ou não agiu o meu cliente em legítima defesa da honra? Da sua própria e da honra de terceiros, neste caso, da jovem Clara Maria Machado, que foi obrigada a ouvir calada essas ofensas a seu noivo…

Mathias foi absolvido por unanimidade, naturalmente. E sua cerimônia de casamento religioso com Clarinha, um mês depois, na Igreja das Dores, teve até a presença de um repórter e de um fotógrafo da famosa revista O Cruzeiro. E o velho rábula apareceu no instantâneo da reportagem da revista carioca, como padrinho ao lado dos noivos, com seus longos cabelos grisalhos despenteados, os olhos empapuçados, vestindo o mesmo terno amarrotado e tentando ajeitar a gravata torta.

* Escritor


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895