O Correio do Povo e eu

O Correio do Povo e eu

Erico Verissimo *

Erico: "Quanto a mim, tenho várias dívidas para com o Correio do Povo. A primeira é a de me ter ele acolhido meus contos no seu suplemento literário..."

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Foi lá por 1929 que escrevi o meu primeiro conto, "Ladrão de Gado", que Mansueto Bernardi fez publicar na sua Revista do Globo. O meu ideal, porém, era ter algum escrito meu reproduzido no suplemento literário que o Correio do Povo publicava semanalmente, e no qual colaboravam os melhores escritores da geração de Augusto Meyer, Reynaldo Moura, Theo Tostes, De Souza Júnior e vários outros. Um dia, numa atitude por assim dizer "suicida" meti num envelope os originais dum conto de minha autoria e enviei-o a De Souza Júnior, que era um dos organizadores do suplemento. Fiquei então à espera do "milagre". Nos dois números seguintes do suplemento não vi meu trabalho publicado. Pensei assim: "Devem ter jogado o conto na cesta de papéis. Mas que diabo! Quem sou para querer aparecer numa página em que colaboram escritores como Augusto Meyer?" E ao pensar isso uma espécie de cábula perante mim mesmo se apoderava de mim, perturbando-me. No entanto o meu "A Lâmpada Mágica" apareceu um dia, ocupando uma página inteira do encantado suplemento. Li o conto e não gostei. Mas não nego que fiquei feliz ao ver meu nome no alto duma página impressa. Continuei a mandar meus escritos para o suplemento, que continuou a publicá-los, quase sempre com ilustrações do Benjamin Soares Cabello, o Cabellito, com quem eu viria a fazer no futuro muito boas relações de amizade, e que se haveria de tornar um economista competente. Um dia uma ideia que então parecia doida aos poucos a quem eu a confiava, tomou conta de mim. Não sentindo nenhuma inclinação, nenhuma habilidade para o comércio, eu decidira seguir uma carreira literária, nem que tivesse de comer sopa de pedra. Tendo fracassado numa empresa comercial, mudei-me de minha cidade natal para Porto Alegre em fins de 1930, dois meses após a vitória da Revolução de 30. 


Eu já estava exercendo as funções de secretário na Revista do Globo quando visitei pela primeira vez a sede do Correio do Povo. Sua redação estava longe, muito longe de ser como as desses tipos de jornal que a gente se habituara a ver em filmes de Hollywood. Era ainda o velho prédio original. Nenhum luxo. Tinha um certo ar de coisa antiga, e lá encontrei algumas pessoas de aspecto antigo. O Mário de Sá, quase sempre de colarinho duro, enchia a sala com a sua cordialidade aérea e apressada, a fumaça de seu famoso charuto era já uma antecipação dos cheiros da Borregaard. O velho João Obino montava guarda à caixa - homem probo, dotado de obstinado talento comercial. A seu lado encontrei seu lugar-tenente, Alcides Gonzaga, sujeito simpático, com sua voz mansa e sua mansa ironia. (Não respondo pela minha cronologia quando tento situar no tempo as figuras que conheci naquele 1931). Com sua barba negra e pontuda, seu perfil fino, suas mãos bem moldadas, De Souza Júnior me pareceu um príncipe italiano do Renascimento. Alexandre Alcaraz foi para mim enigma que nunca consegui decifrar; não o achei expansivo, mas nossas relações foram boas, e não tenho queixas dele. Gostei de Renato Costa, que escrevia longos artigos de economia para a quarta página - homem afável, com um ar imponente de embaixador. E lá estava também um poeta e prosador que eu sempre admirava, e que então era redator-chefe do jornal: André Carrazoni. Eu não saberia dizer se foi na década de trinta que tive o prazer de encontrar o dr. Edgar Luís Schneider, homem fino e culto, um cavalheiro de aspecto correto que sempre sugeria um ministro das Relações Exteriores da Alemanha ‑ mas da velha Alemanha, anterior ao Terceiro Reich, naturalmente. 
Os redatores e os repórteres? Fui conhecendo-os aos poucos. Arquimedes Fortini tinha a alma duma criança no corpo dum redator romano. Eu já encontrara Paulo Gouvêa na roda do chope que se reunia quase todas as noites no bar do Antonello, ao redor de Augusto Meyer e Théo Tostes; Paulo era um bom poeta, um divertido causeur. Sim, e havia ainda seu irmão Sérgio - menos espontâneo e cordial que Paulo - mas jornalista inteligente. E havia outras figuras muito estimadas na redação como o Peixoto, o Saadi, o Berutti. E uma boa quantidade de focas, que vieram a tornar-se mais tarde competentes jornalistas, como é o caso do Adail Borges Fortes, um muito seguro secretário de redação. 


Não me lembro de quando, onde e como vim a conhecer o fabuloso P.F. Gastal, grande conhecedor de cinema e outras artes, amigo leal, - o Gastal dos famosos bolsos em que se perdem e se reencontram os papéis, sem que ninguém saiba explicar o fenômeno, o P.F., homem de sete instrumentos, desses que gostam de ajudar os outros e que - coisa extraordinária - nunca se serviu do jornal para proveito pessoal, quero dizer, para se "promover", para usar a nomenclatura de nossos dias. (Seu filho Ney segue-lhe os passos, isto é, faz jornalismo, mas noto entre ambos uma diferença de temperamento, de estilo e de orientação). E como posso esquecer de figuras como Carlos Reverbel, Raul Ryff e desse admirável cronista que é Rivadávia Souza? Antônio Carlos Ribeiro, que eu conhecera menino, jogando bolitas nas ruas de Cruz Alta, havia se transformado num cronista de primeira ordem. Não levei muito tempo para perceber que predominava no Correio do Povo um espírito de família. Para muitos daqueles funcionários, o "jornal" era uma espécie de segundo lar. Não quero dizer com isso que todos se sentem sempre felizes e satisfeitos, e que todos vivem como irmãos. Um redator ou um colaborador pode resmungar queixas contra o chefe. Pode até demitir-se. Mas não é sabido que os arranha-céus têm de oscilar ao vento para que se mantenham num equilíbrio seguro? As famílias mais unidas são aquelas onde de quando em quando os filhos se revoltam (aberta ou secretamente) contra os pais e onde os irmãos nem sempre estão de acordo uns com os outros. Assim o Correio do Povo, quantos "filhos pródigos" têm tido o Correio, que trabalham longos anos em sua redação e um dia, insatisfeitos ou revoltados por alguma razão, demitem-se e põem o pé na estrada? Mas o curioso é observar como tem sido considerável o número daqueles que voltaram à casa paterna e que, se não tiveram uma festa de recepção ruidosa, com churrasco de bezerro e um anel para seu dedo, pelo menos reocuparam a sua mesa e continuaram a trabalhar como se nada tivesse havido?


Quanto a mim, tenho várias dívidas para com o Correio do Povo. A primeira é a de me ter ele acolhido meus contos no seu suplemento literário, o que representou para o escritor principiante o abrir-se duma porta. A segunda dívida eu a contraí, creio que em 1932, ano crucial do meu tempo das vacas magras. Eu trabalhava na Revista do Globo durante o dia, fazia traduções de livros em casa, à noite, só tendo as tardes de sábado e os domingos para escrever meus primeiros romances. Sabendo de minha situação financeira difícil, André Carrazoni e Alcides Gonzaga - que por morte de João Obino assumira a gerência do Correio - propuseram-me lhes organizasse uma meia página semanal destinada aos leitores do sexo feminino. Deram-me a liberdade de fazer essa seção, como entendesse e me pagavam por ela uma quantia que hoje seria irrisória mas que naquele tempo representou para mim um aumento de renda nada desprezível. Comecei o trabalho. Deve ter sido das coisas piores que até hoje fiz em toda a minha vida. Para essa meia página, cujo nome era obviamente Femina, eu costumava escrever uma crônica fútil e curta, que assinava com um pseudônimo. O resto eram notícias sobre filmes e artistas de cinema e ilustrações - em geral modas e bordados - pirateadas de revistas italianas e francesas. Era com um sentimento de cábula que nunca pude dominar, que eu mensalmente recebia o meu ordenado. A verdade é que tão logo a minha situação financeira melhorou, escrevi um cartão (em estilo também "encabulado") ao Alcides Gonzaga e no qual lhe dizia da minha convicção de que a seção que eu fazia era má, e em nada ajudava ao jornal, e que, portanto, eu desejava terminar com ela. Seguiam-se agradecimentos. (Por esse tempo, André Carrazoni, como havia acontecido com outros tantos intelectuais do Rio Grande do Sul, já se havia mudado para o Rio de Janeiro). (Continua...) 


Com alguma frequência, eu ouvia e ainda ouço até hoje, críticas ao Correio do Povo “por ser um jornal que nunca se define politicamente". Ora, a mim me parece que o velho diário de Caldas Júnior não tem nem quer ter uma linha ideológica de caráter partidário. Procura ser objetivo, no que, guardadas as proporções, é o que fazem os grandes jornais de importância internacional como o Times de Londres e o de Nova York. O que me parece fora de dúvida é que o nosso Correio tem dado muitas provas de independência e inequívocos testemunhos de uma espécie de orgulho jornalístico – como também é o caso de O Estado de São Paulo – resistindo a pressões externas. É assim que tenho compreendido a sua posição na imprensa brasileira. E eu que, como escritor, detesto sofrer pressões externas de qualquer natureza, seria o último homem no mundo a criticar a diretriz jornalística do Correio do Povo.


Quanto mais estudo esse jornal (e confesso que não o estudo muito a fundo) mais ele me parece ter qualidades mágicas. Sua história, bem contada, daria um livro com sabor de romance, cheio das personagens mais excêntricas, patéticas, misteriosas ou exemplares. Às vezes tenho a impressão de que seus funcionários que morrem transformam-se em redatores-fantasmas que aparecem na redação a horas não sabidas e fazem a tarefa de que está incumbido o redator vivo que o substituiu – o qual por sua vez já se acostumou de tal forma com o fenômeno que jamais tenta compreendê-la.
A noite, infalivelmente, a certa hora, aparecem na redação cavalheiros idosos, desses que ainda se vestem de preto e usam colarinho de celuloide, sentam-se na “sua” cadeira, perto duma determinada mesa e ali ficam, silenciosos, pigarreando de quando em quando. “Quem é?” – a gente pergunta. Então vem a explicação. “Um amigo do jornal” (Creio que hoje essa espécie está em extinção ou já extinta).


Eu não poderia dizer ao certo quando conheci Breno Caldas, o homem que há muitos anos dirige os destinos do Correio do Povo (Conhecer não é o verbo exato, pois creio que poucos, muito poucos o conhecem de verdade). Introspectivo, homem de poucas palavras, ele no entanto é dotado de senso de humor muito pessoal. Quando assumiu a direção do jornal que seu pai fundara, poucos acreditavam que ele tivesse capacidade para arcar com tamanha responsabilidade, e com tanto sucesso (...).

*Escritor.  Trecho do texto publicado por Erico Verissimo na edição de 1° de outubro de 1975 por ocasião dos 80 anos do Correio do Povo.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895