O Sul (In)Finito de Borges

O Sul (In)Finito de Borges

Médico e escritor Gilberto Schwartsmann escreve sobre a mostra que abre nesta quarta-feira, dia 10, na Biblioteca Pública do Estado

Correio do Povo

Porto Alegre recebe a exposição "Sul (In)Finito de Borges" que mostra obras raras e primeiras edições das grandes obras da literatura ocidental, com acervo de 350 obras de Gilberto Schwartsmann

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“As bibliotecas são janelas para a imaginação”, dizia Jorge Luis Borges. O leitor que ama o livro deve incluir em sua agenda uma visita à Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, na Praça da Matriz, em Porto Alegre, a partir do dia 10 de abril, quando será aberta a mostra “Babel In(Finita): Borges por Sarmiento”, agora sob um novo título: “Sul (In)Finito de Borges”. Trata-se de um recorte de cerca de quatrocentas obras raras e de primeiras edições, que permite uma surpreendente viagem pelo cânone literário ocidental e, mais importante, com o olhar do grande escritor argentino.

Ao longo de sua trajetória literária, Borges dedicou-se à crítica, ensaio, poesia, conto e entrevista. Ganhou enorme reconhecimento internacional sobretudo como contista, sendo um dos mais importantes escritores do chamado “realismo mágico”. Borges transforma a literatura latino-americana, a qual desembarcaria depois em Gabriel Garcia Márquez, Júlio Cortázar e outros.

Com a curadoria de um misterioso Facundo Sarmiento, a mostra exibe preciosas edições de obras fundamentais, como A Bíblia Sagrada; “A Ilíada”, de Homero; a “Divina Comédia”, de Dante Alighieri; a dramaturgia de William Shakespeare; o “Paraíso Perdido”, de John Milton; as traduções de Galland e Mardrus, de “As Mil e Uma Noites”; a primeira edição de “Ulysses”, de James Joyce; “A Metamorfose” e “O Processo”, de Franz Kafka; ou a primeira edição de “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust.

Há também raríssimas edições de clássicos da literatura publicadas séculos atrás, como um “Decameron”, de Boccaccio, editado em 1497; obras de Cícero, São Tomás de Aquino, Rousseau, Molière, Baudelaire, Balzac, Dickens, Thomas Mann, Tolstói, Dostoievski, Tchekhov e outros. Há raríssimos exemplares de peças teatrais de Lope de Vega, do século XVII; originais da poesia de García Lorca, Paul Verlaine e Pablo Neruda; e primeiras edições de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez; e da “Rayuela”, de Julio Cortázar.

Não falta uma bela coleção de primeiras edições de clássicos da língua portuguesa, como uma rara primeira edição de Dom Casmurro, de Machado de Assis; de Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa; bem como primeiras edições de obras de Graciliano Ramos, Euclides da Cunha, Clarice Lispector e Érico Veríssimo. Há igualmente uma bela seleção de primeiras edições de nossos modernistas, não faltando a primeira edição de Macunaíma, de Mario de Andrade. Dos autores portugueses, há edições raras de “Os Lusíadas”, de Camões; obras de Padre Antônio Vieira, Eça de Queiroz e primeiras edições de José Saramago.

Há uma estante com exemplos dos chamados “arrependimentos”, onde são exibidos exemplos de edições feitas pelo autor antes da obra ser impressa em sua versão definitiva. Há exemplos de obras de Camus, Proust, Baudelaire e uma pérola da literatura gaúcha: a íntegra dos originais da obra A volta do “Gato Preto”, de Erico Verissimo. Há muito para ver e desfrutar nesta mostra, sem falar na primorosa seleção de primeiras edições das obras de Borges, de seu companheiro Bioy Casares, do grande Domingo Sarmiento e até mesmo primeiras edições de obras daquele que foi a grande inspiração de Borges, Macedonio Fernández.

A mostra é um desdobramento de duas anteriores e recentes, a primeira delas intitulada “Babel (In)Finita: Borges por Sarmiento”, realizada ao longo do primeiro semestre de 2023, na Academia Nacional de Medicina, a mais antiga instituição cultural do país, fundada em 1829, na cidade do Rio de Janeiro. Esta mostra migrou, no segundo semestre do mesmo ano, como uma “Nova Babel (In)Finita”, para os belos espaços da Academia Brasileira de Letras, joia rara de nossa cultura, fundada em 1897, na Cidade Maravilhosa.

O título das duas mostras inspirou-se num conto memorável de Borges, intitulado “A Biblioteca de Babel”, publicado na obra "Ficções” (1944), o qual descreve uma biblioteca que “equivaleria ao Universo... composta por um número indefinido, talvez infinito, de galerias hexagonais... e que abarcaria todos os livros...”. Borges diz que “suspeita-se de que a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita”.

No conto intitulado “A Memória de Shakespeare” (1983), Borges menciona a história de um misterioso anel do Rei Salomão, que antes pertencera a um mendigo de Lahore. Quem o possuísse, “poderia compreender o idioma dos pássaros”. Assim, “ao abrirem as asas e voarem” da Academia Nacional de Medicina para a Academia Brasileira de Letras, as obras raras e primeira edições pertencentes a este rico acervo particular proporcionam ao visitante desfrutar de um recorte do cânone literário ocidental por mim ornamentado com um olhar de Borges.

No conto intitulado “O Aleph” (1949), Borges descreve uma pequena “esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor”, escondida no porão de uma casa, através da qual se pode enxergar o cosmo. As bibliotecas são assim, como janelas para o universo. Em “A Escrita de Deus” (1949), título de outro de seus belos contos, ele descreve a história do último homem, o qual é capaz de decifrar a mensagem de Deus contida “nas manchas das peles dos tigres”. Foi Borges quem fez com que estas obras seguissem por um “jardim de veredas que se bifurcam”, como diz uma de suas obras, até chegar a um de seus contos prediletos – e autobiográficos - intitulado “O Sul” (1944).

No conto, ficção e realidade se confundem num texto que fala de uma volta às origens. Como diz Borges, “a realidade gosta das simetrias e dos leves anacronismos”. Quem sabe a força do misterioso anel do Rei Salomão tenha permitido que os mesmos pássaros – ou livros – realizassem um voo de retorno ao Sul, como o fez a personagem do bibliotecário Dahlmann no conto homônimo de Borges. A mostra chega a Porto Alegre, para instalar-se na Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, um dos mais belos prédios da cidade, com a fachada em estilo neoclássico e de forte influência positivista.

O novo título “Sul (In)Finito de Borges” é uma homenagem ao grande poeta gaúcho Carlos Nejar, que traduziu o conto “O Sul” e parte da obra de Borges para o português, quando da publicação de suas “Obras Completas” (Ed. Globo, 2000). Como antes, a mostra não pretende decifrar, esgotar ou apresentar o cânone da literatura Ocidental, mas entrecruzar obras de um acervo privado à memória de leitura do grande escritor. Para Borges, a mente contém o universo. Ela é uma representação do todo que há no mundo real e em nosso imaginário. Se somados – o que seria impossível - nossos pensamentos ou a nossa infinita imaginação seriam aproximações de tudo o que pode haver no cosmo ou que possa ser visto na pedra mágica de seu conto “O Aleph” (1949).

A geografia do planeta pode estar contida apenas na Veneza única e amada por Lord Byron ou por Thomas Mann, pois o espaço, à primeira vista limitado fisicamente, torna-se o todo quando inundado pela imaginação. A universalidade de Borges é transmitida através de uma “herança genética dominante” a outros autores. Aparece, por exemplo, em obras de Ítalo Calvino, como “Cidades Invisíveis” (1972), nos diálogos com Kublai Khan; ou em “Palomar” (1983), onde “toda e qualquer coisa fica feliz ao se ver observada pelas outras coisas”. Como Bloom, Borges considerava a obra de Shakespeare a mais completa descrição dos tipos humanos de todo o cânone literário ocidental. Para ele, o Novo Testamento, “As Mil e Uma Noites” e as obras de Homero, Dante, Cervantes e Shakespeare eram as mais representativas de nossa cultura.

Privadamente, Borges dizia-se fascinado pela poesia de “Folhas de Relva”, de Walt Whitman. Ele adorava citar Mallarmé, o poeta francês do simbolismo. Verlaine homenageia Mallarmé em Os poetas malditos (1883), enquanto este reconhece Poe, ao traduzir “O Corvo” (1845). Borges, por sua vez, adorava o poema “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” (1897), de Mallarmé, que rompe com as estruturas tradicionais da poesia. No poema “Quadrilha” (1930), Drummond fala que “João amava Teresa, que amava Raimundo, que amava Maria”. Borges amava Mallarmé, que amava Verlaine. E os três amavam Poe. Borges nos lembra: “Eu sempre imaginei o Paraíso como uma espécie de biblioteca”.


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