Olhos escondem as serpentes

Olhos escondem as serpentes

Eduardo Rodrigues *

Capa do livro 'O Poeta ao Piano', de Michiko Kakutani

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Por quase quatro décadas, as sentenças desta nipo-americana sobre livros e autores foram consideradas tábuas sagradas da crítica literária nos Estados Unidos. Durante seu reinado no New York Times, Michiko Kakutani cimentou carreiras e obras natimortas e impulsionou talentos realmente originais, com argumentos demolidores em relação aos primeiros e irrefutáveis sobre os segundos.

Hoje, aos 68 anos, a ex-analista de obras de ficção e não ficção do Times continua com o mesmo 1,60 metro de altura, mas sua reputação nesse universo povoado por vaidosos, superestimados e incompreendidos cresceu em dimensões difíceis de mensurar. Para o bem e para o mal.

Educada em Yale e aluna de redação do autor de “Hiroshima”, John Hershey, durante a graduação em Literatura Inglesa, Kakutani começou sua trajetória no jornalismo como repórter do Washington Post entre 1977 e 1979, ano de seu ingresso no NYT, onde inicialmente cumpriu pautas sujando os saltos dos sapatos de grife nas ruas. Em 1983, assumiria a função que a consagrou.

Temida por avaliações precisas e impiedosas, temperadas por metáforas que emprestavam frescor aos textos, mas dor de cabeça a escritores e editoras, Kakutani provocava catarse na véspera. Nos dias anteriores às publicações de suas resenhas, era compreensível que escritores ficassem insones e vissem o nível de sudorese subir assustadoramente. Essa espiral de sensações incômodas era justificada após a leitura do jornal logo ao amanhecer. 

Boa de briga, incomodou até autores que admirava e ajudou com observações que iluminaram e chamaram a atenção para suas obras. Em 2006, Jonathan Franzen, uma das estrelas em ascensão nas letras americanas e capa da Time anos depois, sofreu com o peso de sua pena, mas retrucou. Kakutani chamou “A Zona do Desconforto” (Discomfort Zone) de “o autorretrato odioso de um artista como um jovem idiota”. Franzen devolveu a “lisonja”, classificando-a de "a pessoa mais estúpida da cidade de Nova York". Autores como Martin Amis, David Foster Wallace, Zadie Smith, Ian McEwan e George Saunders, no entanto, tiveram mais motivos para agradecer do que para questionar suas críticas.
Escreveu de forma notável também sobre integrantes do cânone literário, como John Updike, Saul Bellow e Gabriel Garcia Márquez, logo após as suas mortes, e elogiou a autobiografia do guitarrista Keith Richards (Vida) e as pontes com representantes da Geração Beat construídas por Lou Reed no álbum The Raven, de 2003, para citar artistas de outras freguesias, mostrando sua versatilidade.

Parte do melhor de sua volumosa produção foi reunida no livro “O Poeta ao Piano”, lançado no Brasil pela Casa Maria Editorial em 1988. Dez anos depois, a jornalista seria laureada com o Pulitzer de melhor crítica por seu trabalho sobre livros e autores no New York Times.

A seleta é bom resumo dos perfis de escritores, cineastas, dramaturgos, produtores, músicos e atores que valorizaram as páginas do Times. Textos que, segundo ela, são “um instantâneo de um artista em ação”, sendo os mais curtos “pouco mais que esboços impressionistas de pessoas vistas em determinado momento, em determinado estado de espírito, sob determinada luz”. A luz projetada pela crítica que tem por hábito tornar claro o que sempre fora escuro para o leitor, apesar de esconder invisíveis serpentes por trás daqueles olhos — mesmo dom de iludir do par de espelhos coruscantes de Judith Campbell, a modelo sedutora que exercitou esse talento, com outros objetivos, na maciez dos lençóis de figuras de proa do poder, do showbiz e do submundo americanos. 

Nos parágrafos iniciais dos perfis de Gore Vidal e Ingmar Bergman, que sublinho da ótima tradução de Ana Arruda Callado (viúva de Antônio Callado), Michiko Kakutani revela o essencial da obra do escritor e a essência de uma das ilhas cujo hóspede mais notório era o cineasta. Se não provocam pequenas epifanias, seus “insights” provam como ela captou o que a maioria de seus pares jamais percebeu ou suspeitou.

Sobre Gore Vidal

“Nos livros de Gore Vidal há um cinismo penetrante, um tom de desilusão amarga. Os políticos, seja em Roma ou Washington, conspiram ou roubam; as pessoas se juntam e se separam despreocupadamente, à procura de prazer; e o mundo prossegue estupidamente em direção a um fim vergonhoso. A sátira, como têm assinalado os críticos, é suave e muitas vezes engenhosa, mas a visão continua fria, admitindo pouca esperança e ainda menos caridade. Como sua prosa, a conversa de Vidal também possui um ar de irritação erudita; suas sentenças são, não apenas entremeadas por alusões clássicas, como pontuadas de suspiros e bocejos. Parece que ele sofre de uma espécie de fadiga espiritual, e pouco faz para disfarçá-lo”.

Sobre Ingmar Bergman

“É um lugar frio e desolado, esta ilha Faroe. Durante o verão, os turistas vêm, trazendo com eles o riso das crianças e o sol, mas a primavera chega tarde à ilha e, mesmo em maio, ainda restam lembranças do inverno. Um vento vindo do Báltico, que retorce os pinheiros, dando-lhes a forma de árvores bonsai, sopra do lado do mar e, nas primeiras horas da manhã, uma neblina úmida e espessa desce sobre as praias, tirando a cor da paisagem e tornando tudo cinzento.”

 

* Eduardo Rodrigues é jornalista e escritor 

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895