Omissões de nosso passado indígena

Omissões de nosso passado indígena

Zilá Bernd *

Micheliny Verunschk, autora da obra "O som do rugido da onça" traz figurações de mulheres indígenas

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Tenho escrito de forma recorrente sobre as supressões de vozes de escritoras mulheres, com ênfase para as afro-brasileiras, as quais só nas últimas décadas vêm sendo publicadas por importantes editoras, que estão finalmente cumprindo seu papel de representificar as omissões do passado. No âmbito do presente artigo citarei duas escritoras atuais que vêm tentando tirar do esquecimento o papel das mulheres indígenas em nosso país. 

 

Nesse contexto, é importante ressaltar a obra, de leitura imprescindível, de Micheliny Verunschk, autora de “O som do rugido da onça” (Cia. das Letras, 2021), que traz, de forma muito original, figurações de mulheres indígenas, praticamente exiladas do romance brasileiro, com poucas e brilhantes exceções como em obras de autoria de Darcy Ribeiro, Bernardo Carvalho, Antônio Torres, João Ubaldo Ribeiro e Milton Hatoum.

 

A autora narra, com grande delicadeza e com descrições de cenas inesquecíveis de vivência na selva, a história vivida pelos indígenas Iñe-e e Juri, levados para a Europa por pesquisadores europeus. Retirados de suas famílias e levados para um contexto totalmente diferente, não suportam a solidão e a mudança de clima, vindo a falecer. 

 

Em sua sensível apreciação da obra de Micheliny Verunschk, Itamar Vieira Júnior, na contracapa, assim se exprime: “Ao sermos confrontados com o éthos dos povos indígenas, podemos decidir se leremos essa história como estranhos ou se nos permitiremos conceber uma maneira nova de elaborar o mundo que nos cerca”. Penso que justamente é essa a ambição de Micheliny Verunschk: nos confrontar com essa realidade da vivência indígena, esperando que ela modifique profundamente o leitor, que não pode sair da leitura do mesmo modo que nela entrou. A obra nos coloca diante da situação de rever todas as nossas omissões em relação aos primeiros habitantes do Brasil, os “donos da terra”, constituindo-se como um chamamento para que nos impliquemos na causa indígena. 

 

Outro bom exemplo de representificação das omissões em relação às mulheres indígenas, é o de Maria José Silveira, que reedita a história do Brasil do ponto de vista das mulheres. Sua obra “A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas” (Globo, 2002), que já teve várias reedições, presta um extraordinário serviço à trajetória das mulheres no Brasil, imaginando 18 histórias, narradas por 18 diferentes mulheres narradoras. As narrativas iniciam-se em 1500, com a descoberta do Brasil, e vão seguindo de forma extremamente original, entre os séculos XVI e XX. 


A narradora informa: “Vamos contar a história por onde ela começou. Com Inaiá, a pequena tupiniquim, a origem” (Silveira, 2002, p. 12). A longa narrativa de 367 páginas inicia, portanto, entre 1500 e 1514, em Porto Seguro, na Bahia, e termina com a história de Maria Flor, em 1968, no Rio de Janeiro. A menina indígena, Inaiá, veio a ser, aos 12 anos, a primeira mulher do português Fernão, grumete da tripulação de um navio que comerciava pau-brasil. Foram ambos mortos por uma tribo de tupinambás que invadiu o local. 

 

Maria José Silveira ilumina, com sua escrita, a vida de mulheres que ficaram à sombra durante toda a nossa história, isto é, que não foram protagonistas da história e cujas vidas não deram origem a narrativas. Sua tarefa é a de desvelar – no sentido fotográfico do termo – os desvãos das vidas dessas mulheres anônimas que não figuram nos manuais de História. Tarefa imensa e ambiciosa: realizar o processo de transmissão de trechos ou fragmentos das vidas de nossas antepassadas, que não tiveram registrados seus feitos e muito menos os abusos contra elas cometidos. A autora precisou efetuar um trabalho de reminiscência, que corresponde à recuperação intencional de vestígios memoriais, já que tão pouco das vidas dessas mulheres brasileiras que viveram nos primórdios de nossa história foi registrado. 

 

Recontar suas vidas corresponde a um gesto de reconhecimento de uma dívida em relação à nossa ancestralidade, recriando espaços de recordação para ressignificar no presente os fatos apagados da nossa história. 

 

Muitas escritoras mereceriam figurar em listas que fossem feitas de leituras obrigatórias, já que o poder de suas palavras e a persistência de suas memórias causam enorme impacto no leitor, sobretudo nas leitoras, pois são obras que em geral focalizam o papel da mulher (e da escritora, em particular) como transmissora de memórias inter e transgeracionais. Elas recuperam vestígios de uma memória longa, reprimidos pelo poder hegemônico. 

 

Estamos longe – quando abordamos a caudalosa produção feminina no mundo e no Brasil da contemporaneidade – daquela associação do romance feminino com as histórias delicadas do roman à l’eau de rose, ou seja, com o romance que costumávamos chamar de “água com açúcar”. Há uma premência em denunciar, restaurar equívocos, representificar omissões do passado e abordar temas inabordáveis até bem pouco tempo atrás, que em muitas ocasiões a leitura pode até nos chocar.

 

Quantos interditos, quanta coisa que “uma moça bem comportada não podia fazer” e que uma senhora de respeito não poderia abordar: tudo isso é enfrentado pela escrita feminina da contemporaneidade, que por isso pode desestabilizar o leitor que estiver à espera de temas “leves”. 
Autoras mulheres da nossa pós-modernidade abordam os temas mais difíceis e pesados, como estupro, relação conflituosa entre mãe e filha, homossexualidade, lesbianismo, universo de prostitutas, crime/castigo, rejeição de filhos, sujeição de mulheres a maridos violentos, entre outros. Temas dos mais ásperos e inabordáveis há algumas poucas décadas atrás. Desse universo de denúncia e de reversão de omissões e apagamentos do passado surge uma literatura brasileira de primeiríssima qualidade, representada por autoras como Eliane Brum, Carola Saavedra, Tatiana Salem Levy, Letícia Wierzchowski, Jane Tutikian, Cíntia Moscovich, Martha Batalha, Martha Medeiros, Adriana Lisboa, Carla Madeira, Maria da Graça Rodrigues, Aline Bei, Ana Paula Maia, entre outras. Precisamos ler suas obras!


* Professora aposentada da Ufrgs. Pesquisadora 1A CNPQ


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895