Orelhano de Marca e Sinal

Orelhano de Marca e Sinal

Conto em memória do médico e Poeta Mário Eleú Silva, recentemente falecido, e do Seu Ramão, Orelhano de marca e sinal, que nos deixou há muitos anos.

Alcy Cheuiche*

"Acelero o Fuca no rastro de um deles que consegue ultrapassar o FNM fumacento".

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Que diacho, meu tempo está estourando e não consigo sair detrás deste caminhão. Quando é que irão duplicar a BR 290? Acho que só no ano dois mil, ou muito depois. E, no verão, cada vez tem mais castelhanos nesta estrada. Acelero o Fuca no rastro de um deles que consegue ultrapassar o FNM fumacento.

Bueno, se consigo chegar pelas quatro da tarde, ainda dá tempo de juntar uma ponta de gado, botar na mangueira e verificar se o carrapaticida que estou testando funciona bem ou não. Nessa hora o pessoal deve andar campereando, mas seguramente o caseiro, o Seu Ramão, está na volta das casas. Pegamos dois cavalos e trazemos o gado. Hoje mesmo tenho que voltar para Porto Alegre e voar amanhã para São Paulo. Vou me reunir com os veterinários que estão testando o produto em outros estados. Se não vejo esses bichos daqui a pouco, meu relatório ficará incompleto…
Ligo o rádio para me distrair e escuto com prazer a canção Orelhano, cantada por Dante Ramón Ledesma. Meu amigo Mário Eleú Silva, o autor da letra, mostrou que é poeta de verdade:
Orelhano de marca e sinal / Fulano de tal de charlas campeiras / Mesclando fronteiras, retrata na estampa / Rigores do pampa e serenas maneiras.
Orelhano, brasileiro, argentino / Castelhano, campesino, gaúcho de nascimento/ São tranças do mesmo tento sustentando um ideal / sem sentir a marca quente nem o peso do buçal.
Orelhano, ao paisano da tua estampa / Não se pede passaporte nestes caminhos do pampa / Orelhano, ao paisano da tua estampa / Não se pede passaporte nestes caminhos do pampa. 
Conheci algum orelhano? Muitos, sem dúvida, aqui pela fronteira, entre eles o próprio Seu Ramão, um índio grande, com muito sangue charrua, domador que cruzava as fronteiras do Uruguai e da Argentina e seguia falando o mesmo idioma misturado de português e espanhol. Nunca teve carteira de identidade e, até hoje, nunca diz feijão, só poroto. E empeçar em vez de começar. Essas e outras palavras que todo mundo entende. Quando ficou muito velho e pesado para domar, aquerenciou-se na estância do meu pai, onde hoje só cuida das lidas da casa: puxa água, corta lenha, varre o pátio, dá lavagem para o porco em engorda e debulha milho para as galinhas. Só monta a cavalo para botar as vacas, todo o entardecer, e enchiqueirar os terneiros. 
De repente, ainda nos últimos acordes do Orelhano, chego na encruzilhada, a uns quarenta quilômetros de Alegrete e pego a estrada de terra. Três e meia da tarde. Já estou vendo a avenida de eucaliptos. Vou chegar na hora, felizmente.
Paro o Volkswagen na frente do galpão, e o Seu Ramão levanta-se com dificuldade do banco e vem ao meu encontro. Num palanque está atado um cavalo picaço, de cabeça baixa, certamente o sogueiro, e o aponto para o campeiro velho:
- Boa-tarde Seu Ramão. Tudo bem com o senhor? Desculpe a pressa. Preciso ver alguns dos bois banhados com o carrapaticida novo. Pegue esse cavalo e mangueie outro para mim, enquanto eu troco de roupa. Vamos juntos trazer uma ponta de gado para a mangueira.
Digo isso enquanto aperto de leve sua mão e lhe bato no ombro, do jeito tradicional da nossa fronteira. Olho outra vez o relógio e me apresso em entrar na casa grande para vestir minhas bombachas e enfiar as botas. No caminho, cumprimento a Dona Constança, a esposa do capataz, e fico sabendo que ele, como eu calculava, só deve voltar do campo com a peonada à tardinha: O senhor sabe, com esse sol quente, eles faz pouco que saíram.
Uns dez minutos depois, chego de volta na frente do galpão e vejo que o Seu Ramão está com o cavalo picaço encilhado, mas ainda não montou. Gosto de ver que está com seu chapéu de abas largas e que colocou as garroneiras com esporas. Mas, como estou com muita pressa, lhe digo:
- Monte duma vez, homem de Deus. Preciso voltar ainda hoje para Porto Alegre.
Com cuidado, ele junta as rédeas e o cabresto com a mão esquerda, põe um pé no estribo e se alça para cima do lombilho. No mesmo momento, o cavalo dá um arranco e começa a corcovear. O homem velho, muito pesado, ainda se aguenta uns dois pulos e é atirado no chão. Cai meio de cabeça e fica com a mão no rosto empoeirado, o nariz sangrando, enquanto o cavalo segue vendendo os arreios campo a fora. 
Corro até ele e o ajudo a se levantar, com muita dificuldade. 
- Mas o que que deu com esse cavalo, Seu Ramão? Não é o piqueteiro?
- Não senhor, patrão. É um ventena, um redomón mui veiaco, que o domador deixô palanqueando prá alivianá.
- Mas… mas então por que o senhor montou nele, sabendo que ia lhe derrubar? Por que montou nesse cavalo, Seu Ramão?
Ele limpou o sangue do nariz com o braço e me respondeu simplesmente:
- Porque o senhor me mandou.

* Escritor. 

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895