Os 70 anos da Camisa Canarinho

Os 70 anos da Camisa Canarinho

Doutor em História da Arte e curador independente, José Francisco Alves, escreve sobre as sete décadas da autoria de Aldyr Schlee do uniforme vencedor da Seleção Brasileira

Correio do Povo

Aldyr Garcia Schlee vestindo a sua criação, a Camisa Canarinho

publicidade

Em 28 de fevereiro de 1954, em Santiago, Chile, aos 37 minutos do primeiro tempo, Baltazar chutou contra a meta do escrete andino e anotou no livro desportivo da nação o fato histórico: o primeiro gol da seleção brasileira com a camisa canarinho. O Brasil ganhou a partida do Chile com mais um gol do centroavante, sendo também aquele o primeiro jogo do Brasil em eliminatórias, novidade instituída para o mundial da Suíça. É importante nesta marca dos 70 anos da canarinho, um dos mais difundidos símbolos do Brasil, relembrar a sua origem. Ela não surgiu do acaso, tem uma história e o seu criador não é nada menos que um ilustre gaúcho.

Em 1950, a Copa do Mundo foi retomada após a interrupção da guerra e o Brasil foi escolhido para organizá-la. O país, com um grande time, preparou-a certo de ser campeão. Mas veio o Maracanazo como uma tragédia nacional, só superada pelo fiasco de 2014. A derrota para o Uruguai (16 de junho de 1950) acabou por marcar o nosso uniforme como “azarento”. Era totalmente branco, gola e frisos das mangas em azul marinho, bem como a listra lateral do calção. Às vezes, usava-se com calção azul e/ou meias brancas de listras azuis. A camisa “reserva”, azul. Porém, basicamente a camisa branca foi a configuração predominante, desde a primeira partida da seleção, em 21 de julho de 1914, no Rio de Janeiro, nos 2 x 0 sobre o inglês Exeter City. As variações pontuais que houve, nos parecem impensáveis. Em 1916, teria sido usada uma camisa listrada em verde e amarelo. Em 1918, vermelha, repetida em 1936. Em 1919, uma camisa preta e amarela, tal qual a do Peñarol; no ano seguinte, como a do Boca Juniors, azul marinho com faixa peitoral amarela.

Em 1953, considerava-se que o uniforme da seleção “não representava nada, muito menos um país vibrante como o nosso”, pois faltava “simbolismo no uniforme que os nossos craques usavam nos certames internacionais”. O clamor da mudança encontrou no jornal carioca Correio da Manhã (1901-1974) o espaço para a campanha. Resultou disso a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) organizar com o jornal um certame artístico para a escolha de um novo fardamento.

Em fins de setembro de 1953, Aldyr Garcia Schlee (1934-2018), então um jovem de 18 anos e residente em Pelotas, leu no Correio da Manhã sobre o concurso para o novo uniforme, com prazo de proposta até o dia 14 de novembro. Natural de Jaguarão, ele era um expert em dois universos, o desenho e o futebol. Seus times de coração, o Brasil de Pelotas e a Seleção do Uruguai. Em 1950, havia iniciado o que fez durante a maior parte de sua vida, incríveis álbuns próprios, desenhados, a cada Copa do Mundo. Dado ao seu conhecimento futebolístico e artístico, decidiu participar do concurso. Ele enviou a sua proposta como o exigido, sob pseudônimo, em desenho sobre cartão, cerca 20 x 25 cm. O júri foi integrado pela CBD, representantes das belas artes, Correio da Manhã e outros veículos da imprensa. Conforme o regulamento, o concurso foi realizado para escolher o “uniforme para o seu quadro oficial de futebol”.

Em princípios de dezembro, Schlee, com 19 anos completados em 22 de novembro, se pôs a conferir com frequência o Correio da Manhã, que chegava da capital federal por avião. No dia 10, ele leu que o vencedor já estava escolhido, entre as 301 propostas: “foi nesse ambiente, e quando parecia que pouco se iria aproveitar, que surgiu o modelo que de pronto galvanizou a opinião dos presentes que foram unânimes em achá-lo como preenchendo totalmente o objetivo a que se propunha a Comissão”. Um jurado “mais entusiasmado” declarou: “já estou vendo o selecionado brasileiro entrando em campo com esse vitorioso uniforme . É realmente o melhor trabalho apresentado”. Por volta do dia 15, Schlee sentiu o seu coração disparar, na mais pura emoção: o jornal reproduzia a sua proposta como a vencedora. A nota omitia o ganhador, mas para ele e os demais 300 candidatos isso não era mais necessário. Em 27 de dezembro, na capa do Suplemento Esportivo do Correio da Manhã, foi publicada a única imagem conhecida da proposta de Aldyr Schlee, em cores, impressa em rotogravura. Posteriormente, os documentos do concurso foram descartados.

Há que se considerar que a distribuição das cores por Schlee tenha sido apresentada também por outros candidatos. Mas é possível que tais propostas nem sequer tenham sido percebidas, em razão de suas formas de apresentação. Nesse sentido, o meu ponto principal é que a proposta de Schlee ser apresentada como arte de qualidade foi decisiva: o desenho de uma elaborada cena, com o jogador Índio, do São Cristóvão, em primeiro plano a conduzir a bola e o Maracanã ao fundo, em uma visualização praticamente “viva” do que seria os nossos jogadores com o novo uniforme. Foi uma percepção criativa, realmente notável por parte do jovem artista. E o regulamento foi bem cumprido, pois um critério decisivo era por “ideias e concepções” resolvidas “pela melhor forma artística ou originalidade da apresentação ou confecção dos trabalhos”.

A apresentação da camisa ocorreu em espetáculo cívico-esportivo, em Maracanã lotado, a 20 de janeiro de 1954, antes do jogo comemorativo pelo título carioca de 1953, obtido pelo Flamengo. Só para resumir, houve uma icônica volta olímpica com Ademir, fardado com o novo uniforme completo e, vestindo ternos, Leônidas e Arthur Friedenreich. Estava apresentado ao mundo o novo uniforme da seleção. Mais adiante, a primeira partida com a nova camisa no Maracanã (21 mar. 1954) foi também o primeiro jogo do Brasil em eliminatórias no próprio país, na primeira vez que a seleção jogava no estádio desde o fatídico Maracanazo. Dizem que ali mesmo veio a denominação “canarinho”, creditada ao célebre Geraldo José de Almeida. Assim como todos no estádio, a impressão de ver o selecionado sem o branco de sempre, com um fardamento bastante colorido, deve ter sido um misto de estranheza, emoção e encantamento. Ao ver os nossos craques com o novo uniforme, o narrador o teria comparado ao pássaro nacional amarelo e chamou a camisa de canarinho (canário, o Serinus canaria). O primeiro campeonato vencido com a canarinho foi o Pan-americano de 1956, no México, quando fomos representados, nada menos, que por um combinado gaúcho.

Aldyr Garcia Schlee, o jovem artista que criou a canarinho, com as décadas desenvolveu carreiras prestigiadas, em diferentes áreas. Ao completar 80 anos, em 2014, era um dos mais importantes escritores brasileiros vivos. Mas a sua posição em relação à canarinho havia mudado completamente. De uma importância que não vislumbrava em criar a “camisa”, como falava, a uma profunda decepção com os seus usos políticos recentes e dos rumos da CBF, sem falar na indignação com os horrorosos modelos da camisa. Sua vida em Pelotas, sempre compartida com a sua cara metade, Marlene Rosenthal Schlee (1935-2017). Quando da Copa de 2014, no Memorial do RS ocorreu uma enorme exposição da história da canarinho a qual exibiu esboços originais da camisa (1953) junto a obras de arte contemporânea alusivas ao futebol. Foi uma justa homenagem em vida ao ilustre Schlee, mas que, infelizmente, seguiu-se pela vergonhosa negativa da Feira do Livro de Porto Alegre em tê-lo como patrono.

Em 15 de novembro de 2018, Schlee faleceu e a situação que seguiu-se no mundo futebolístico nem em seus contos poderia ser imaginada. No dia seguinte, jogaram em Londres, simplesmente, Brasil e Uruguai. Antes da partida, ocorreu em sua homenagem o mais extenso “Minuto de Silêncio” da história esportiva, com dois minutos e trinta e cinco segundos. No centro do gramado, os ídolos milionários do futebol puseram-se abraçados, hirtos, tristes e pacientemente silenciosos como nunca, assim como todo o estádio, a ouvir a explicação nos alto-falantes sobre o motivo da homenagem. Foi um respeito emocionante a alguém que eles não conheciam, que não havia sido nenhum profissional do esporte ou autoridade pública. Prestaram tributo a nada menos que um artista, por este ter criado a canarinho. Para registrar os 70 anos da canarinho, a Casa da Memória Unimed Federação/RS realizará em 6 de março o evento “Juntos pela Paixão”, com a participação do capitão do tetra, Dunga.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895