Os Canibais da Rua do Arvoredo

Os Canibais da Rua do Arvoredo

O escritor Tailor Diniz presenteia os leitores do Caderno de Sábado com um trecho do seu mais novo livro, que terá lançamento em março, na Capital

Correio do Povo

Na sátira "Os Canibais da Rua do Arvoredo", a trama é narrada por um observador onipresente que segue os passos do casal José e Catarina

publicidade

Saí da reunião e fui correndo para o meu terminal do RESIHUC, a curiosidade me escorrendo pelos cantos dos olhos, ansioso para ver como e onde andam meus personagens.

Vejo sobre uma mesa de metal um cadáver para estudos, no que deve ser uma Faculdade de Medicina. Em um círculo, ao lado, posicionam-se estudantes com jalecos brancos e máscaras no rosto. Pelas imagens e sons chegando ao terminal, percebo que todos estão chipados e com ótimos sinais de emissão.

Na cabeceira, vejo um homem grisalho, que é o professor, também usando máscara.

Ele diz:

“Pessoal, isso aqui, que vocês estão vendo, é um corpo humano...”

Alguns riem.

Catarina está entre os estudantes. Mas fica séria, concentrada.

O professor continua:

“Dizendo assim, parece que estou apenas sendo óbvio. Não é mesmo?”

Ele levanta o rosto e encara um por um.

Alguns ainda riem, é possível perceber pelo movimento e pelas rugas no entrono dos olhos, quando as pálpebras se contraem.

“Quando digo que este corpo é de um ser humano”, ele continua, “estou querendo dizer, implicitamente, é que esta pessoa já teve, como todos nós, sonhos e frustrações, já alimentou esperanças sobre a vida e o futuro, já teve pai, já teve mãe, já foi criança e, como criança, já deu alegria aos pais; que, como adulto, já amou, já sofreu, já respirou o mesmo ar que respiramos e, acima de tudo, já foi um de nós... E que, não devemos nunca esquecer, será aquilo que seremos amanhã.”

Olha em volta.

E diz:

“Por isso, é que este corpo merece o nosso respeito. Merece e exige o nosso respeito por tudo o que foi, como ser humano, e por tudo o que representará para nós, para nos trazer conhecimento e para consolidar a nossa missão como médicos, que é salvar vidas... ou, no mínimo, abreviar a dor daqueles que sofrem. E que dinheiro não é o mais importante. Como ele ou sem ele, com muito ou com pouco, esse é o nosso irremediável futuro.”

Faz uma pausa, olha os estudantes e pergunta:

“Podemos começar?”

Todos dizem que sim.

E ele:

“Hoje nós vamos empregar aqui todo o conhecimento de anatomia que, até agora, estudamos de forma teórica. E vou pedir a alguém que queira começar. Não tenham medo de errar.”

Bate com o indicador na testa do cadáver.

“O nosso amigo não sente mais as dores do mundo. E, esteja onde estiver, sabe que sua presença neste recinto será de infinita grandeza para nós e para a missão que escolhemos abraçar.”

Olha em volta. Pega um bisturi de um armário.

“Quem quer começar, por favor?”

Catarina dá um passo à frente.

“Eu, professor!”, ela diz.

E o professor:

“Muito bem! A Catarina vai começar.”

Alcança o bisturi a ela com certa solenidade.

“Vamos começar pelo coração, órgão vital para a nossa saúde, em todos os sentidos. Físicos e emocionais.”

Catarina para ao lado. Olha-o dos pés a cabeça. Apalpa o peito do cadáver.

E o professor, com certo encantamento, que tenta disfarçar no timbre monótono da voz, diz:

“Nessa hora, sempre lembro de um antigo professor de anatomia, chefe do IML da Santa Casa. Tinha fixação por um caso de canibalismo ocorrido na cidade no século dezenove, de um casal que fazia linguiça de carne humana. A gente chamava ele de Doutor Canibal. Era fissurado naquilo, recontava o caso em detalhes a cada aula de anatomia. A gente até achava que era um canibal frustrado. Dizia que depois daquela aula, todos nós estávamos aptos a fazer linguiças de carne humana. E ria como um doido varrido fugindo do manicômio.”

Catarina está curiosa. Faz um corte superficial, sob o olhar dos colegas. Vacila no início, depois vai fundo com o bisturi.

Parece alheia à fala do professor.

O professor continua:

“Alguém aqui já ouviu falar desse caso?”

Os alunos movimentam negativamente a cabeça.

Catarina aprofunda o corte.

“Sim, isso é um assunto de gente velha”, ele sorri. “Os Crimes da Rua do Arvoredo, já foi motivo de estudos acadêmicos, de livros, de peças de teatro. Até Charles Darwin o citou em seus apontamentos, em seus estudos sobre a natureza humana. Há sempre quem se lembre deles aqui, nas nossas aulas práticas. Eu sou o primeiro”, diz e ri alto.

Catarina segue cortando o corpo ressequido, com desenvoltura, como se tivesse conhecimento prático e inegável experiência no que fazia. Aprofunda mais um pouco o corte e toca com o indicador o coração do cadáver. O professor diz muito bem, Catarina. Ela dirige a ele a transparência de um olhar satisfeito. Ele também toca no coração do cadáver e passa a instruí-la sobre os procedimentos seguintes. Ela acata tudo o que houve. E não há dúvidas de que sente prazer no que está fazendo.

Na saída da aula, Pati, uma colega e amiga, vem ao encontro dela. Acha desproporcional alguma coisa no seu semblante. Ao vê-la, Catarina leva um susto, despertada de um momento de vigília interior, mergulhada em outros pensamentos e fantasias. A impressão inicial é de algo absurdo. É de quem não está reconhecendo a colega de aula.

Pati diz:

“Credo, amiga. O que foi aquilo?”

Catarina tem um sobressalto ao ouvir a voz tão próxima. Vira-se para ela.

“O que foi aquilo o quê?”

Pati está surpresa.

“Na aula, você parecia fora de si, outra pessoa, retalhando o cadáver.”

Catarina se descontrai, agora voltando à realidade de seu jeito costumeiro. Um belo sorrido se estampa no seu rosto.

“Coisa da sua cabeça, amiga. Deve ter ficado impressionada com um morto ali, em carne e osso, na tua frente.”

Pati fica séria, jeito de preocupada.

“Pode ser. Mas você parecia tão acostumada com aquilo...”

Catarina segue em frente, na direção da saída.

“Acostumada, não. Mas essas coisas não me impressionam nem um pouco. Se for para meter a faca, eu meto mesmo.”

E solta uma gargalhada fora do normal, que Pati nunca tinha visto. E em desacordo com o ambiente.

* Trecho do livro “Os Canibais da Rua do Arvoredo”, de Tailor Diniz (Lucens/Citadel), cujo lançamento em Porto Alegre será na primeira semana de março em local a definir.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895