Pé na Cara

Pé na Cara

Escritor Alcy Cheuiche presenteia os leitores do Caderno de Sábado com um conto de Natal

Alcy Cheuiche*

Algumas horas se passaram, e o pé continua na minha cara. Mas já deve ter caminhado muito desde que o encontrei. Em busca de comida, de um pouco de dinheiro e...

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Meio-dia. Rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre. Diante da Biblioteca Pública, como num carreiro de formigas, todos desviam de um obstáculo inesperado. Alguma coisa volumosa caída no chão.
Vou-me aproximando. Um pé enorme está apontado para mim. Pé descalço saindo de um monte de panos. Pé de gente grande, largo e ossudo, como pintado por Portinari. Mas, na outra ponta do cobertor sujo, emerge uma cabeça de criança. Os cabelos desgrenhados, os olhos fechados, dormindo em pleno sol.

Discretamente, as pessoas desviam daquele pé na cara. É isso mesmo. Um pé na cara dos passantes que voltam para casa, na véspera de Natal.

Do outro lado da rua, dois azuizinhos estão multando um carro. Penso em mostrar-lhes o menino dormindo na calçada. Mas imagino o que me dirão (Isso não é conosco, ele não foi atropelado), e sigo em frente. Perto do Tribunal de Justiça, dois brigadianos estão de plantão. Ensaio um passo na direção deles. O que vou dizer? Tem o pé de um menino apontando para a minha consciência? Bobagem... E se digo simplesmente: Tem um rapazinho caído ali na frente da Biblioteca (Foi assaltado? Não foi. Então, não é conosco). Desisto mais uma vez.

Diante do Theatro São Pedro, já quase tomando um taxi, sinto uma lufada de coragem. Por que não volto, pego o menino e levo comigo para casa; deixo ele tomar um banho, dou comida. Ele vai ficar encantado com a árvore de Natal. Posso até dar para ele um dos presentes comprados para o nosso filho... Acho que regulam de idade.

É, não é? E depois, o que eu faço? Largo ele de novo na rua? Ou deixo que ele more conosco? E se ele é bandido? Se faz alguma maldade com a minha família? 

Algumas horas se passaram, e o pé continua na minha cara. Mas já deve ter caminhado muito desde que o encontrei. Em busca de comida, de um pouco de dinheiro e... talvez, de cola de sapateiro. 
Na minha cabeça, diante da Biblioteca Pública, renovada, maravilhosa, até com uma homenagem muito merecida ao Marcel Proust, o menino está pisoteando os livros que sempre me pareceram importantes, que são a razão da minha vida. Mas, se não ajudam a terminar com tanta miséria, não passam de exercícios de vaidade, um desperdício de tempo e de árvores destruídas.
Porém, um desses livros está certo. Os Miseráveis continuam se perpetuando pelo Planeta Terra. Victor Hugo tinha razão.

* Escritor

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895