Passa a carteira, velhinho!

Passa a carteira, velhinho!

Alcy Cheuiche *

Capa da Revista do Globo traz a vitória da Revolução de 1930. Nela aparece gaúchos amarrando seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, então Capital Federal

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O velho escritor olhou para o calendário e sorriu. Dia 3 de outubro. Uma data perfeita para ser recordada. E, logo hoje, em que prometi enviar meu conto para o Caderno de Sábado.
Abriu a tampa do leptop, pressionou a última tecla superior direita e ficou cismando até a tela se abrir. Praguejou um pouco para a bolinha que não parava de girar e, finalmente, conseguiu diante de si o que era, apenas, em décadas atrás, uma simples folha de papel em branco.
Concentrado, começou a escrever.
O meu tio Joaquim Tavares, sobrinho-neto do General Joca Tavares, que comandou a Revolução de 1893, não era homem de levar desaforo para casa. Engenheiro-agrônomo, alistou-se no primeiro dia da Revolução de 1930 como cabo e voltou como tenente, promovido, como dizia orgulhosa minha vó Jenny: por atos de bravura.
Aliás, o leitor nada perderá se eu lhe contar um detalhe da tomada de Rio Grande, onde meu tio Joaquim ganhou uma promoção.
Não tendo aderido à revolução deflagrada no dia 3 de outubro de 1930, o Batalhão de Rio Grande foi cercado por tropas oriundas do 9º Regimento de Infantaria, sediado em Pelotas. Os atacantes encontraram ferrenha resistência por parte dos defensores do quartel. Depois de algumas horas de trocas de tiros, com mortos e feridos de ambos os lados, três homens resolveram silenciar uma metralhadora que defendia a entrada principal. O plano era simples. Quando os municiadores fossem trocar o pente de balas da arma, eles correriam atirando em direção aos defensores do portão. Dito e feito. Mal a metralhadora calou-se, três infantes saíram correndo para cumprir a missão. O do meio, era o meu tio Joaquim.
Já haviam atingido a metade do caminho, quando o pente foi introduzido na metralhadora e os atacantes receberam uma descarga em plena corrida. O da esquerda foi ferido no peito, o da direita, na testa, e meu tio Joaquim, graças ao seu escasso um metro e sessenta de altura, só sentiu as balas zunindo sobre sua cabeça. Atirou-se no chão, fingindo-se de morto e, em nova recarga da metralhadora, conseguiu retornar às suas fileiras.
E seguiu lutando, até ser tomado o quartel. Depois, estava naquele trem que levou Getúlio Vargas até o Rio de Janeiro. E orgulhava-se de ter participado de uma revolução que trouxe grandes progressos para o Brasil, como o voto secreto, o voto feminino, as leis de regulamentação das oito horas de trabalho, da aposentadoria remunerada, da regulamentação das profissões, do salário mínimo, da nacionalização do subsolo, entre tantos outros.
Nos cinquenta anos seguintes a esses fatos, Joaquim Tavares viveu uma vida fecunda em diferentes regiões do Brasil. Foi diretor de uma usina de açúcar, próxima à legendária Palmeira dos Índios, em plena época do cangaço. Foi Secretário da Agricultura do Distrito Federal, no tempo em que a capital era no Rio de Janeiro, Chefe de Gabinete de Oswaldo Aranha no Ministério da Agricultura e, para nossa honra, estava no Catete entre os poucos amigos que não abandonaram Getúlio Vargas no episódio de seu suicídio.
Indicado por Juscelino Kubitschek para montar o plano agrícola de Brasília, foi um dos pioneiros da nova capital, sendo autor do livro que conta essa história: Quarenta anos de Agricultura no Planalto. Naqueles anos, organizou e controlou uma grande distribuição de terras, sem ter ficado com um único hectare para si mesmo.
Pois, esse homem sem medo, quando completou oitenta anos de idade, cabelo todo branco e corretíssimo no vestir, foi assaltado em Brasília. Ele saía da missa de sétimo dia de falecimento de um amigo, quando foi abordado por um marginal, quase à porta daquela igreja de vidros azuis, na Avenida W3.
- Passa a carteira, velhinho!
Sem pensar duas vezes, meu tio Joaquim enfrentou o ladrão, derrubou-o com um soco, e ficou olhando enquanto ele se levantava e fugia rua a fora...
Concluído o conto, o velho escritor, agora com a mesma idade de seu tio no acontecimento narrado, revisou-o atentamente como aprendeu a fazer com seus antigos mestres especialistas em copydesk.
Depois, pensando nas últimas palavras que escrevera, retirou as mãos das teclas e fixou os próprios punhos, com olhar sonhador.

* Escritor


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895