Pode ser que seja só o Godot inexistente

Pode ser que seja só o Godot inexistente

Crítico Eron Duarte Fagundes analisa o espetáculo "Esperando Godot", de Luciano Alabarse, cuja primeira temporada se encerrou na semana passada

Eron Duarte Fagundes

Janaína Pellizzon e Sandra Dani protagonizam "Esperando Godot", cuja primeira temporada se encerrou na semana passada

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Escrito em 1952, encenado pela primeira vez em Paris em 1953, Esperando Godot, do irlandês Samuel Beckett, segue apresentando-se (tanto para o leitor do texto quanto para o sujeito de teatro) como um desafio para estas relações entre o teatro (suas possibilidades dramatúrgicas) e a vida nas sociedades humanas. É destas mutações nas sociedades que Godot parece extrair a força de sua perenidade.

Luciano Alabarse, um encenador tão original quanto estudioso, navega, ao encenar Esperando Godot, nestas transformações que a história tem trazido para a peça, sem descaracterizar a construção narrativa única, que é anárquica, anticlimática e capaz de misturar com precisão sutilezas e rudezas na dramaturgia. Antes desta encenação, Alabarse levou ao teatro “Gabinete de curiosidades” (2022), uma peça local de Gilberto Schwartsmann que, em alguns momentos, emula algo de beckettiano, inclusive numa das falas Godot é citado, no rosário referencial de Schwartsmann. É um pouco como se Gabinete fosse um pré-Godot, embora ambos os trabalhos de Alabarse adotem seu próprio brilho.

Desde suas criações cênico-teatrais mais antigas (“Pode ser que seja só o leiteiro lá fora”, 1983, a partir dum texto de Caio Fernando Abreu, seu irmão estético, é um marco na memória de quem ia ao teatro na década de 80, por aqui), Alabarse, sem descuidar-se da exigência para com seus intérpretes, faz uma notável montagem de cenários como elemento essencial de sua linguagem de encenação teatral; naquele antigo espetáculo extraído de Caio, a concentração da ação num ambiente fechado atulhado de objetos de cena, numa noite em que lá fora chovia bastante, a impressão de urgência fugidia do que se passava tinha relações com a elaborada cenografia; em “Esperando Godot”, Luciano dá início à ação numa armação de cenário que é ao mesmo tempo despojada e estranha como uma caverna de espaço pouco preciso, mas aos poucos o cenário se atulha de coisas e lixos e o clima pesa, mostrando o mesmo apocalipse quase juvenil de “Pode ser que seja só o leiteiro lá fora”; lixo e crueldade invadem a paisagem humana, as mãos agora já experientes de Alabarse conduzem as energias abstratas de Beckett para o nosso contemporâneo monturo, plena segunda década do século XXI. Como o tcheco Franz Kafka, o irlandês Beckett propõe uma espécie de parábola semiótica. Um pouco como se estivéssemos lendo um evangelho muito particular: marginal, cortante e oculto. A encenação de Alabarse capta esta parte talvez menos visível no rigoroso texto de Beckett.

Entre os achados que gratificam o espectador, é um prazer reencontrar uma das grandes da interpretação (teatral e cinematográfica) entre nós: Sandra Dani como Estragon é uma aula. E Janaína Pellizzon (Vladimir), Arlete Cunha (aqui como Pozzo; ela é a intérprete central de Gabinete de curiosidades), Lisiane Medeiros (Lucky) e Valquíria Cardoso (Menino), o elenco é inteiramente de mulheres vivendo homens, não ficam atrás de Sandra, são par e passo. E a faixa musical é também uma particularidade do diretor Alabarse, o compositor Karlheinz Stockhausen, que corresponde ao angustiante da encenação, naquilo que se diz, nos cenários compostos que provocativamente atrofiam o humano.

Entre o “nada a fazer” e o “vamos embora”, Estragon e Vladimir preenchem com suas curiosidades a espera por Godot, que é o que todos fazemos, entreter a vida com coisas esperando por um mistério qualquer, um Godot. Quando algo bate à porta, pensamos que pode ser que seja só o Godot inexistente lá fora.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895