Porque me orgulho deste livro

Porque me orgulho deste livro

Alcy Cheuiche *

Quadro "Revolução Farroupilha", de 1893, de autoria de Guilherme Litran, do acervo do Museu Julio de Castilhos

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Um título deve resumir o texto, dizia Marguerite Yourcenar, desde que o escritor se responsabilize por ele. Sim, eu me orgulho de ter escrito “A Guerra dos Farrapos” e preciso dizê-lo imediatamente ao leitor. No entanto, explicar porque me orgulho, poderia exigir um texto maior do que o próprio romance… Mas, vou tentar, a pedido do meu novo editor e velho amigo Marco Cena, companheiro de longa data, principalmente como artista responsável pelas capas de muitos dos meus livros.

Esta obra nasceu quando eu ainda era criança. Pelos dez anos de idade, eu tinha dois mestres: Monteiro Lobato na palavra escrita e meu pai, Alcy Vargas Cheuiche, na palavra falada. E foi ele quem me mostrou, numa viagem de Alegrete à Quaraí, a mataria baixa do arroio Sarandi e me disse:

- Aqui aconteceu o famoso duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires.

E teve a paciência de me explicar quem eram esses personagens e porque, embora sendo ambos farroupilhas, primos carnais e irmãos maçons, enfrentaram-se num duelo de espada, em que o Coronel Onofre veio a morrer.

- Isso que ele era doze anos mais moço do que o General Bento Gonçalves, e muito mais alto e forte.
E acrescentou essas palavras que nunca saíram da minha memória:
- O Duelo Farrapo, narrado num conto imortal de Simões Lopes Neto, foi o verdadeiro toque de silêncio desta guerra, que durou quase dez anos.

É claro que, voltando à Alegrete, eu peguei o livro Contos Gauchescos e li em seus mínimos detalhes.

Dois anos depois, viajando de carro para Pedras Altas, onde ficaríamos alguns dias na estância do meu tio Janino Tavares, irmão da minha mãe, passamos por uns campos bordados por corticeiras, e meu pai contou:
- Por aqui se deu a Batalha do Seival, em 10 de setembro de 1836. Seibo em espanhol, quer dizer corticeira, daí o nome. Em razão da vitória do Coronel Antônio Netto sobre o teu tataravô, Coronel João da Silva Tavares, a República Rio-Grandense foi proclamada neste mesmo local, no dia seguinte.
- Meu tataravô?
- Sim, meu filho. Ele era bisavô da tua mãe. Um homem valente e muito honrado, que veio a receber, mais tarde, os títulos de Barão e Visconde do Cerro Alegre.
- Mas… Eu pensei que nós torcíamos pelos farroupilhas. O senhor fala do General Bento Gonçalves com tanta admiração.
- Antes da Guerra dos Farrapos, Bento e Silva Tavares eram muito amigos, até compadres. Lutaram juntos na Cisplatina e foram eleitos deputados estaduais pelo mesmo partido, o Liberal. Mas quando Bento procurou teu tataravô na cidade do Herval, para propor-lhe fazerem juntos a revolução contra o Império, o Coronel Silva Tavares negou-se, porque não queria que o Rio Grande do Sul se separasse do Brasil.
- Então, qual dos dois tinha razão?
- Ambos tinham razão; Bento em querer que os rio-grandenses deixassem de ser apenas bucha de canhão, fornecendo a maioria dos soldados e das viúvas em todas as guerras de fronteira e sendo dirigidos por prepostos do Império que pregavam a volta do Brasil ao domínio de Portugal. Silva Tavares em temer que essa revolução viesse a tornar independente a nossa província, o que nos faria deixar de ser brasileiros.
- Então… não devemos torcer por nenhum lado?
- Não, meu filho. Todos os que lutaram na Guerra dos Farrapos eram irmãos. E, por isso, quando os castelhanos de Oribe e Rosas ameaçaram invadir o Rio Grande do Sul, os farroupilhas lhe mandaram a famosa mensagem: Assinaremos a paz com o Império do Brasil com o sangue do primeiro soldado estrangeiro que invadir nossa fronteira. E assinaram a Paz do Ponche Verde, com o Barão de Caxias, aqui perto, em Dom Pedrito, na mais linda de todas as datas históricas desta fronteira, o 28 de fevereiro de 1845. Que, para mim, deveria ter tantas comemorações como o 20 de setembro.
Essas conversas com o meu pai foram a gênese deste livro que não foi escrito como uma história de mocinhos e bandidos. E, para deixar bem clara a posição de narrar os fatos sem torcer para um ou outro lado, basta a leitura atenta do primeiro capítulo, A Ponte da Azenha.

Dona Mafalda Verissimo me contou que Erico leu, pelo menos, uns cem livros em português e espanhol sobre a formação histórica do sul do Brasil e dos países do Prata, antes de escrever sua saga O Tempo e o Vento. Eu também li muitos livros que me prepararam para escrever A Guerra dos Farrapos, inclusive a obra mestra de Erico Verissimo. Somente que optei, neste romance, em não criar personagens de ficção, uma vez que o fio condutor da narrativa não precisava alongar-se mais do que o período chamado de Decênio Heroico. E são tão densos esses personagens, homens e mulheres, são tantas as informações sobre eles em prosa e verso, que tratei apenas de ser fiel aos episódios que conto, sem nada incluir que não fosse histórico. Garibaldi e Anita, por exemplo, embora sejam os personagens principais de apenas um capítulo, intitulado Anita Garibaldi, me exigiram uma exaustiva pesquisa, começando pela leitura do original em francês das Memórias de Garibaldi, redigido por Alexandre Dumas. Meu domínio dessa língua, como do espanhol, inglês e alemão, me foram de grande utilidade para a leitura de muitos textos nos seus originais, uma vez que as traduções nem sempre são confiáveis.

Mais uma razão para me orgulhar deste livro, foi que ele me proporcionou dois momentos extraordinários no ano de 1985, no Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. O primeiro deles aconteceu na Rua Riachuelo, onde encontrei a jovem Elma Santana, hoje uma das escritoras mais importantes do Rio Grande do Sul, e ela me disse com sua sinceridade habitual:
Terminei de ler o teu livro e quero te dizer uma coisa: agora, finalmente, eu entendi como foi o começo, o meio e o fim da Guerra dos Farrapos.

Foi a primeira opinião que recebi, justificando, sem dúvida, o fato de que outros milhares de leitores trouxessem este livro daquela primeira a esta décima-segunda edição.
Alguns meses depois, recebi em sessão solene o prêmio literário Ilha de Laytano, sendo saudado pelo historiador Arthur Ferreira Filho, mais tarde meu colega na Academia Rio-Grandense de Letras, com algumas palavras que nunca esquecerei:
Vosso livro de história romanceada, mais história que romance, é belo e oportuno. Ocupa-se da Revolução Farroupilha, quando o Rio Grande comemora um século e meio daquele glorioso acontecimento. Fala dos seus campeões e de seus feitos, de suas grandezas e de suas misérias. Retrata com fidelidade os costumes do tempo e o nível cultural das elites gaúchas. E mais, não vos deixastes contagiar pelo vezo, muito em voga em nossos dias, que pretende pesar a conduta dos homens e a importância dos fatos ocorridos, em séculos passados, pela balança do presente.
Imune aos preconceitos mesquinhos e às pretensões pueris, soubestes, em termos brilhantes e pleno conhecimento de causa, destacar as grandes figuras que, de um e de outro lado, serviram com honra e cavalheirismo o partido que abraçaram. Bento Gonçalves e Caxias, os dois expoentes maiores das forças que se digladiavam, ambos aparecem em vosso livro sem auréolas mitológicas, mas na sua grandeza humana, na sua inteireza de caráter, na sua nobreza de coração.
Fiquemos por aqui. Acredito que honrei os ensinamentos de meu pai, que estava presente à outorga do prêmio, escrevendo um livro despido de ódios, mas que busca, acima de tudo, contar a verdade. Por essa razão, suas últimas linhas, dedicadas à despedida de Bento Gonçalves, continuam válidas em 2022, como na época em que as escrevi:

No mesmo barco que o trouxe de Triunfo a Pedras Brancas, seu corpo é levado até o Camaquã. O enterro é simples. Poucos amigos estão na Estância do Cristal. Mas um deles guardará seu túmulo. Nico Ribeiro, o ex-escravo e corneteiro. E os gaúchos, passando pela estrada, ouvirão muitas vezes o clarim. É o toque de silêncio de uma guerra. Que até hoje não chegou ao fim. 

* Escritor


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895