Primeirão dos Beatles completa 60 anos

Primeirão dos Beatles completa 60 anos

Músico e jornalista do CP, Christian Bueller, fala da sua relação com “Please Please Me”, álbum de estreia dos Beatles, que completa seis décadas no dia 22 de março

Christian Bueller

A sessão de gravações do álbum de estreia dos Beatles foram todas no estúdio 2 da EMI, agora Abbey Road Studios

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Vou fazer uma confissão. O sobrenome que aparece aí em cima não é o meu de batismo, na verdade. Na certidão pululam dois nomes de família bem brasileiros. A mudança da “alcunha artística” tem muito a ver com o álbum “Please Please Me”, estreia dos Beatles, que se torna um simpático, porém, enérgico disco idoso de 60 anos no próximo 22 de março. E histórico também. Ali se quebrava a casca de uma revolução que transcende a musical e segue nos perseguindo décadas adiante. Exemplo disso é que um pouco mais de vinte anos depois do lançamento, um guri aficionado por televisão ficava embasbacado com uma das cenas icônicas de “Curtindo a Vida Adoidado”, em que um tal de Ferris Bueller, entre suas peripécias, invade um desfile típico americano dublando “Twist and Shout”, música originalmente dos Isley Brothers.

Mais do que a ousadia do personagem, a fascinação recaiu sobre a batida, os vocais “ooh”, os gritos do cantor e o catártico “aah-aaaah-aaaaaaah”, que irrompe em um acorde e parece trazer mais alegria ao mundo. Aos seis anos, eu conheci os Beatles, até então, liderado por um John Lennon que gravou a releitura em um único take, ao fim das sessões, após as 22h, já sem voz. Foram litros de leite e pacotes de chicletes para aguentar o tranco, pois o disco foi gravado praticamente em um dia, em 11 de fevereiro. Em cerca de 10 horas! 

Das 14 faixas, quatro já estavam nas bocas da juventude: os singles “Love me do” – da gaita de boca inconfundível de John – e “P.S. I love you”, de Paul McCartney, de 1962, e “Please Please Me/Ask me Why”, lançado em janeiro do ano seguinte. O compacto mais recente (os mais experientes vão lembrar do que se trata) trouxe um relativo sucesso na Inglaterra, liderado por uma canção composta como balada ao estilo Roy Orbison e, depois, acelerada nos ensaios a pedido do produtor George Martin. Foi o hábil maestro que decidiu que precisavam de mais dez canções para ter em mãos um material suficiente para o inevitável estouro da banda. Sábio Sir.

“One, two, three, four”! A contagem de Paul é o abre-alas da carreira discográfica beatle, com um arranjo de contrabaixo “emprestado” de “I’m talking about you” de Chuck Berry. Antes de chamada de “Seventeen”, a potente “I saw her standing there” é o cartão de visitas adequado para o furacão que o mundo conheceria. Presença confirmada nas turnês seguintes, é tocada por McCartney em seus shows até hoje.

O álbum ainda teria outras três canções da dupla de compositores mais famosa do universo pop. “Misery” e “There’s a place” expunham bem uma das marcas de John e Paul parecerem uma pessoa só ao microfone, tamanho o enlace das duas vozes. “Do you want to know a secret”, de Lennon, é cantada por George Harrison, que também entoa uma gema do grupo vocal feminino The Cookies, “Chains”, uma dos seis covers que completam o álbum. 

Ao longo da sessão de gravações no estúdio 2 da EMI – agora, Abbey Road –, Martin achou conveniente e mais ágil aproveitar o repertório apresentado nas intermináveis noites no Cavern Club, em Liverpool. Requereria poucas tomadas, já que as músicas já estavam no inconsciente dos rapazes. Desta ideia, foram eternizadas as versões de “Anna (Go to him)” e “Baby it’s you”, na voz de John, a valsa “A Taste of Honey”, cantada por Paul, e “Boys”, com um Ringo Starr que toca bateria e canta ao mesmo tempo, em um só take. 

Aliás, é nesse formato que a última música do disco poderia ser gravada. Já passava das 22h15 e a sessão deveria terminar logo. Um quase afônico John Lennon tentou declinar, mas George Martin o convenceu a berrar “Twist and Shout”. Acreditem, ficou lindo. De uma só vez. A versão definitiva dessa música que encerra o sessentão “Please Please Me” é arroz-de-festa em formaturas, aniversários e casamentos em todo mundo, sem necessitar de uma remixagem por conta dos elementos que me catapultaram para o universo dos Fab Four ainda menino. Parafraseando Humberto Gessinger, “eu posso ser um beatle, um beatnik, ou um bitolado”. E um Bueller.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895