Questionando a onipresença do Modernismo brasileiro de 1922

Questionando a onipresença do Modernismo brasileiro de 1922

Zilá Bernd *

Luis Augusto Fischer, autor do livro "A Ideologia Modernista", publicado pela Todavia Livros

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No ano do Centenário do Modernismo de 1922, podemos tender a magnificar esse movimento que, gestado em São Paulo, dominou a cena literária da época e teve repercussões no Brasil inteiro. 

Para conter a tendência generalizada de exaltar o Movimento de 22 como fator determinante de tudo que veio depois na Literatura Brasileira, o professor Luís Augusto Fischer, do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, produziu – durante o confinamento imposto pela pandemia de Covid-19 – uma obra pioneira no sentido de desmitificar o impacto – do assim chamado Modernismo de 1922 – na cultura brasileira. 

A obra revela um profundo conhecimento da história da cultura e da literatura brasileiras, de seus principais artífices, bem como das repercussões do Modernismo de norte a sul do país. Em A ideologia modernista: A Semana de 22 e sua consagração (Editora Todavia, 2022), Fischer demonstra, além do íntimo conhecimento da literatura e da crítica literária brasileiras, a capacidade de empreender, com energia e audácia, a tarefa de contribuir com as comemorações do Centenário do Modernismo de modo crítico, através de aprofundada análise de obras de autores que escreveram sobre o tema entre 1922 e 2022. Deixando de lado ufanismos, procedeu a uma análise crítica aprofundada e buscou desconstruir alguns dos estereótipos que se agregaram a leituras anteriores do Movimento que, na maior parte das vezes, se limitaram a exacerbar sua amplitude e importância na cena literária brasileira. 

Desse modo, em sua análise do Modernismo de 22, o autor deixa de considerar o Movimento como critério absoluto para validar a produção literária brasileira que permeia todo o século XX. Sua principal crítica centra-se no fato de o Modernismo paulista ter sido considerado “o ponto zero de tudo de bom que o Brasil produziu em sua cultura, ao longo do século XX” (p. 12). A ideia de que tudo de ousado e criativo que surgiu após a Semana seria tributária desse movimento, constitui-se na motivação maior do autor para desconstruí-la, apontando autores e obras maiores de nossa literatura que nada tiveram a ver com o modernismo como as de Machado de Assis, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Simões Lopes Neto, João do Rio além do samba carioca desde 1920. O mérito maior da obra de Fischer consiste na tentativa (bem sucedida!) de desconstruir essa visão redutora, porém consagrada na quase totalidade dos manuais escolares. 

Trata-se de uma pesquisa de grande fôlego, exposta com muita clareza – como costuma ser o estilo do professor Fischer – em uma obra de 444 páginas, acompanhada de uma extensíssima bibliografia, contendo obras de autores, de 1922 a 2022. Certamente esse livro se tornará referência obrigatória, não só para os que quiserem melhor avaliar a amplitude do movimento e suas ramificações, mas também para os que querem conhecer os meandros da ideologia que subjaz à “consagração” da Semana de 22, a qual se apoia na “consolidação do estado de São Paulo como força dominante econômica e da capital paulistana como a sede principal da moderna indústria cultural do país” (p. 12). 


Desvendando ao longo de onze décadas (de 1922 a 2022) as teses dos mais diferentes autores que escreveram sobre a Semana de Arte Moderna e seus desdobramentos, de Mário e Oswald de Andrade, passando por Nelson Werneck Sodré, Sergio Buarque de Holanda e Graça Aranha, com ênfase para Antonio Candido, Afrânio Coutinho e Luís Lafetá, o autor chega à década de 1982 onde aborda os estudos de José Guilherme Merquior e José Miguel Wisnik. Posteriormente, debruça-se sobre as análises de Nicolau Sevcenko, Roberto Schwarz, entre muitos outros, chegando a 2022 com a leitura de Jorge Caldeira. Se algo se pode dizer, de não propriamente negativo, mas de excessivamente radical nesta obra, é que praticamente nenhum dos críticos analisados escapa à crítica cáustica de Luís Augusto Fischer...

O livro, que foi aqui abordado em rápidas pinceladas, é leitura obrigatória no ano do Centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Indispensável a todos os que se interessam pelas leituras no contrapelo, pelas necessárias revisões de conceitos que vêm se repetindo de década em década, como nos aconselhou Walter Benjamin. Aqui a leitura minuciosa e crítica se justifica pelo fato de o autor ser movido pelo objetivo maior de tentar entender as razões pelas quais o dito modernismo paulista foi convertido em uma espécie de gênese da “boa literatura brasileira” (p. 12). Fato que levou o também estudioso do Modernismo de 1922, Ruy Castro, a afirmar, sobre o livro de L.A. Fischer: “Nunca o Modernismo paulista se viu tão nu e de entranhas tão expostas como neste livro” (quarta de cobertura). 

* Bolsista de Pesquisa do CNPq. Professora do PPG Memória Social e Bens Culturais da Unilasalle. 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895