Reconstruções da Paisagem

Reconstruções da Paisagem

Marilice Corona *

Pintura "Pontal da Barra", criada na técnica de acrílico sobre tela em dimensões de 1,50m x 1,50m, é uma das obras da mostra de Clovis Martins Costa

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O artista Clóvis Martins Costa exibe, na Galeria Ocre, um conjunto de 17 pinturas recentes que à primeira vista podem causar certo estranhamento, pois, parecem desafiar qualquer expectativa de linearidade de procedimentos ou “estilo”. De modo investigativo, o artista se lança a descobrir muitas formas de dar resposta a um assunto que o ocupa há mais de vinte anos: a paisagem. 

Na cultura ocidental o termo paisagem não é sinônimo de natureza ou um arranjo de elementos da mesma. Esta palavra, inclusive, demora a entrar nos dicionários. Trata-se antes, da representação de um olhar contemplativo. De uma relação. Conforme nos diz Maderuelo, “a paisagem não é um mero lugar físico, senão um conjunto de uma série de ideias, sensações e sentimentos que elaboramos a partir do lugar e seus elementos constituintes.” (1). É esse olhar estetizante diante do mundo que inaugura a Paisagem.

Clóvis Vergara de Almeida Martins Costa, o penúltimo dos oito filhos do professor e escultor Cláudio Martins Costa, nasceu e morou até a idade adulta no antigo casarão onde ainda reside sua mãe Suzana Vergara Martins Costa, na Av. Guaíba, defronte ao rio, no bairro Ipanema, Zona Sul de Porto Alegre. O Rio Guaíba, como diria Clóvis, que sabemos ser um lago, mas que em nosso imaginário continua a ser um rio. É através desse lugar, fazendo um pequeno recuo, que gostaria de me aproximar das recentes pinturas do artista. Gostaria de pensar sobre a impregnação dessa vista no olhar do menino que desde cedo experimentou a sensação da imensidão. Essa grandeza que se estende para os lados, mas também para frente, em profundidade, em distância. Olhar para a outra margem do rio proporciona a experiência da percepção ou concepção da linha do horizonte, tão rara para quem mora nos centros urbanos. A visão desse encontro aparente de duas matérias. Ar e terra ou ar e água. Ar, terra/areia e água são elementos primordiais dessa paisagem. Em síntese, uma marinha se faz em duas ou três faixas paralelas e horizontais; de cores e luzes distintas conforme os caprichos do tempo.

E o pôr do sol do Guaíba? Um espetáculo de cor e luz que se renova a cada dia. Como diz o artista em seus escritos “eu tinha um pedaço do litoral quase no pátio da minha casa”. Imaginemos, aqui, quantas experiências foram realizadas nesse imenso quintal que se estendia desde o arvoredo em torno da casa da infância em direção ao rio, tendo o Morro do Sabiá à sua direita. Quantas coisas instigantes o rio deveria devolver à margem e que poderiam se tornar brinquedos ou despertar as mais incríveis fantasias? Pedaços de barcos, pedras, objetos dos mais variados. Ainda hoje, o artista segue coletando, em suas caminhadas litorâneas, o que as águas regurgitam à terra. Fragmentos de embarcações, madeiras, objetos que vão para o atelier e que muitas vezes serão retrabalhados e apresentados conjuntamente às pinturas. São fragmentos de memórias. Todas essas reverberações costeiras ou marginais, trazidas pelas águas turvas da memória, são matéria bruta, energia propulsora do trabalho artístico. Matéria e memória que serão reconfiguradas pelo artista e que, só então, desembocarão na Arte. 

PESQUISA

Nos anos 2000, Martins Costa inicia uma intensa pesquisa sobre a pintura e a paisagem que perdura até os dias atuais. O artista começa estendendo suas telas na areia a espera que o rio, seu velho companheiro, também faça a sua parte. O ir e vir de suas pequenas ondas vai impregnando, pouco a pouco, os rastros do tempo. As marcas deixadas pelo rio sobre as imagens fotográficas, sublimadas no tecido de algodão, fundem-se e geram novos signos. Importante ressaltar que essas imagens se tratam de registros da própria paisagem ou registros do próprio processo de estender as telas na margem. Há uma contínua retroalimentação do trabalho inserido na paisagem e transformado por ela. Depois de alguns dias ou semanas semienterradas na areia, sob as águas, e expostas às mudanças atmosféricas, os tecidos voltam para o atelier impregnados de novas informações, recebendo então os procedimentos pictóricos que promoverão novos adensamentos e novas formas. Erguem-se do solo para a verticalidade da parede.

Em um processo dialógico com a imagem vinda do rio, o pintor frente a frente com a tela acrescenta novos planos de cor, transparências, linhas ou texturas. Ou seja, adiciona à superfície tudo aquilo que essa nova paisagem lhe pede ou permite. Como espectadores, temos a sensação de transitar entre a superfície e a profundidade das imagens. Seria possível dizer que é desse movimento que trata a obra de Clóvis Martins Costa. Desse movimento oceânico, do vai e vem das águas, do aparecimento e desaparecimento da imagem, do nadar na superfície e o mergulhar em profundidade. Mergulhamos em uma sobreposição de tempos e de planos. Faixas horizontais de cores terrosas, azuis, ferruginosas, ocres. Tons que sussurram o vento, o bater do metal ou do portão mal fechado.

Chacoalham as árvores, sementes no chão. Verdes úmidos e a textura da areia, o plano, a superfície. Voltamos. Estamos na Galeria Ocre. Entramos e à primeira vista há uma explosão de cores e novos procedimentos. Percebe-se paisagens. Umas mais figurativas, outras mais sintéticas, geométricas. Transitamos entre figuração e abstração. Fica evidente que novas incursões foram realizadas, mas se percebe o fio condutor. A superfície de “aporte”, como chama o artista, já não é aquela informada pelas ações das águas, da areia e do tempo sobre a imagem e o tecido. Essas incursões já vêm em forma de quadro. O quadro como objeto, o quadro como superfície, o quadro como janela, o quadro como instituição, o quadro como dispositivo, o quadro como história e memória da própria pintura.

Martins Costa revisita a história da arte e da pintura de paisagem e vai buscar em Piero Della Francesca, Jacop Von Ruisdael, Gustave Courbet, John Constable, Paul Cézanne, Vasily Kandinsky, Paul Klee, Tom Tompson, Sean Scully e Richard Diebenkorn a estrutura espacial e a diversidade de recursos que empregaram. O artista conta que seleciona as imagens de pinturas que lhe “chamam a atenção pelas soluções ou problemas que os pintores encontraram ou propuseram em seus trabalhos.” Essa proposta de trabalho trata-se de uma verdadeira lição de pintura! Que relações Martins Costa consegue estabelecer entre a Natività de Della Francesca e as paisagens de Cézanne, Scully e Diebenkorn? Deslizando pelos séculos, o artista percebe certas recorrências que reverberam em suas próprias preocupações. Nesta nova série, sentimos a maturidade do pintor nesse livre trânsito pela história. Interessa-lhe o aspecto construtivo do campo pictórico e é nisso que reside a possibilidade de aproximação de um Della Francesca e um Scully. Clóvis Martins Costa não apenas desdobra e amplia suas possibilidades de criação, mas nos ensina o delicioso mergulho de ver e compreender os problemas de pintura. 


1. MADERUELO, Javier. “El paisaje; génesis de um concepto”. Madrid: Abada Editores, 2013, página 38. 

* Artista visual. Professora Dra. de Pintura do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes e do PPGAV-Ufrgs. 

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895