Redimensionamento na obra de Antônio Maria

Redimensionamento na obra de Antônio Maria

Eduardo Rodrigues

'Além de escrever bem, Maria o faz com tal charme e graça que desestimula qualquer cotejamento com outros pares de sua geração...’

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A seleta de crônicas “Vento Vadio” não é brisa de verão nem sopro leve do luar. É um tornado por escrito com força suficiente para mover as placas tectônicas da crônica brasileira e abalar o topo do seu cânone. Lançada pela Todavia no final de 2021, ano do centenário de nascimento de Antônio Maria, a antologia de crônicas do jornalista pernambucano coloca sua obra em outra dimensão, superior à de muitos colegas de ofício e no mesmo nível de qualidade da legada pelo capixaba Rubem Braga, cujo reinado no gênero parecia vitalício e intocável.
Impressionado com as surpresas incluídas nesta edição, o jornalista Humberto Werneck batizou-as de ouro mariano, expressão que traduz a essência contida neste livro, um catatau de quase 500 páginas das quais o leitor sai plenamente satisfeito com o resultado da mineração feita por Guilherme Tauil, organizador da melhor e mais completa seleta de textos costurados com linha de alta qualidade pelo bom Maria, como dizia Vinicius — bom de frases, de copo (uísque, preferencialmente) e de amores como ele.
Do montante extraído e finamente peneirado, Tauil selecionou 185 crônicas, das quais 132 até agora inéditas em livro. Um livro não apenas superior em tamanho, mas em valor literário, se comparado às outras coletâneas magras do autor de “Canções de homens e mulheres lamentáveis”, uma digressão sobre os mistérios da alma que sofre, que Maria abre com a seguinte preciosidade:
“Esta noite… esta chuva… estas reticências. Sei lá”.
Cronista como Maria e Werneck, Tauil desencavou joias esquecidas ou ignoradas. Reunidas pela primeira vez, colocam Antônio Maria em seu devido lugar. Agora ele e Rubem Braga estão roçando cotovelos no mesmo altar graças à excelente pesquisa de Tauil. Não à toa ele assumiu a curadoria do Portal da Crônica Brasileira, do Instituto Moreira Salles, em substituição a Humberto Werneck, que saiu para finalizar a biografia do poeta Carlos Drummond de Andrade para a Companhia das Letras.
Para além da importância de Antônio Maria na crônica brasileira, “Vento Vadio” apresenta aos leitores um cronista desconhecido, sobretudo pelo tom amoroso e memorialístico dos textos iniciais, que lembram a infância e a família no Recife, e nos encanta e surpreende na mesma medida pela riqueza vocabular, que traz à tona palavras e expressões, mesmo as regionais, perdidas nas brumas do tempo, como almécega, cuiambuca, perdulários, ventura, candeeiro, e outras que ele vai soprando por entre as páginas.
O autor de clássicos do samba-canção como “Manhã de Carnaval”, com Luiz Bonfá, aparece na melodia de frases buriladas em mesas de bar e madrugadas solitárias em aposentos espartanos. Outra leitura possível é a que enxerga o sentido educativo desses textos, como se nós, jornalistas e leitores, estivéssemos diante de um compêndio intitulado “Lições de um mestre”, tal a beleza do que ali é narrado, revivido, compartilhado. Poucos dessa linhagem em nosso idioma uniram tão bem vogais e consoantes para encantar o próximo, em benefício coletivo.
Além de escrever bem, Maria o faz com tal charme e graça que desestimula qualquer cotejamento com pares da mesma geração. Integrantes do chamado quarto ciclo da crônica brasileira, Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Sérgio Porto e José Carlos Oliveira, personagens do livro “Os sabiás da crônica”, organizado por Augusto Massi (Editora Autêntica, 2021), e um arco de cronistas que parte de Machado de Assis, passa por João do Rio e chega a Luis Fernando Verissimo, são todos excelentes, mas Antônio Maria vibra em outro diapasão.
É como você ler grandes contistas americanos, como Poe, Faulkner, James, Cheever, dos Passos, O’Connor e Hemingway e, de repente, correr o olhar e se inebriar com as narrativas de Raymond Carver, onde se percebe nitidamente a força de sua prosa expansiva e humanista ao tratar das coisas comezinhas da vida.
É difícil de explicar e a experiência pode variar de pessoa para pessoa ou nem acontecer. Mas, se você estiver aberto a essas pequenas epifanias, prepare-se para se apaixonar perdidamente e de Antônio Maria nunca mais se divorciar. Boêmio da alta madrugada, mestre do texto curto, inquilino de corações desocupados e jornalista de laudas em espaço duplo, o cronista maior da noite carioca teve o peito de fazer isto com a gente:
– É preciso amar, sabe? Ter-se uma mulher a quem se chegue, como o barco fatigado à sua enseada de retorno. O corpo lasso e confortável, de noite, pede um cais.
Na contracapa de “Vento Vadio”, Verissimo rompe com a unanimidade entorno de Rubem Braga:
“Dos quatro grandes daquela época — Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Antônio Maria —, Maria era o mais completo, para não dizer o melhor e puxar briga. Ele fazia a crônica lírica e literária dos outros, mas fazia humor superior. Como, por exemplo, aquele bilhete que deixou para o amigo em seu apartamento: “Se você me encontrar dormindo, deixe. Morto, acorde-me”. Infelizmente, não há maneira científica ou mágica de trazer o Maria de volta.”

* Jornalista, escritor e editor. Autor de seis livros. 

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895