Richard John e a retina do sábio

Richard John e a retina do sábio

Eduardo Vieira da Cunha *

"Se os desenhos de Richard se recusassem ao mimetismo, eles assim entrariam na ordem do fantasma, do simulacro. São imagens rebeldes, representações paradoxais de uma invisibilidade constante"

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A exposição “Desenhos Miméticos”, em cartaz no Atelier V 744, nos traz uma coleção de trabalhos em que podemos ver sublinhado o elemento erro num jogo de descobertas e acertos. Mesmo em um espaço de representação clássico como o desenho, podemos observar uma diferença entre aqueles artistas que obedecem à objetividade da referência, e aqueles que a subvertem com a insistência do erro e tornam-se mais radicais na especulação. A obra de Richard John tem uma definição muito forte, que é a da resistência. E uma atitude interrogativa: resistir para que e por quê? Para talvez recusar qualquer agenciamento, qualquer enquadramento, resistir à desaparição. Os elementos, tanto os que nos lembram das imagens icônicas, como os das revistas e brinquedos da nossa infância, resistem nos desenhos como uma fábula da insistência e da obstinação. 


Isso pode ser muito bem representado por um episódio: a imagem de Cristo, da série "Morphing Jesus", de 1996, feita pelo artista no muro da Avenida Mauá, em Porto Alegre. Ela integrou um projeto que envolveu artistas da cidade. Mas a de John foi a única que resistiu naquela construção de concreto durante mais de 20 anos. Como e por que ela resistiu tanto? Não foi, com certeza, apenas pelo simples princípio do mimetismo ao ícone religioso. Ela resistiu a uma relação, a um detalhe que nos intriga. 


Era uma imagem já trabalhada pelo artista em série, em outras exposições. Ao contrário do que parece, os desenhos de Richard John não são de fácil compreensão. Mesmo que representando brinquedos antigos, ele nos impõe uma leitura temporal, uma dialética do que ficou. Seria a “dialética do parado”, na qual a história se desagrega e se constitui, segundo Benjamin. Podemos dizer que a imagem “desmonta a história que ela segue e, em a seguindo, ela monta, ela remonta o tempo”. Seus desenhos seriam as peças do quebra-cabeças do tempo na história, a imagem-turbilhão que gera um movimento, o da descoberta da miniatura, da cópia. Não é por acaso que os desenhos estão justapostos a outras imagens icônicas apropriadas. Ou em vitrines, com revistas e outros objetos, onde a palavra toma o lugar da representação. Em vez de colecionar, agora é escolher, copiar, retificar, com a inscrição do nome que parece dissolver figuras, formando novas e amplas paisagens. E tocar no opaco espelho de múltiplas resistências: lembrar, listar, preencher, incompletar. Trazendo o paradoxo da invisibilidade da memória. 


Há um motivo profundamente secreto nas séries "Dropping Names" e "O Trabalho do Trabalho", de Richard John: compilações de prenomes dispostos em uma única folha de papel e um caderno de anotações de aula: o motivo seria o da surpresa, o da incompletude, o do desejo-falta e o do desejo-excesso, da resistência. A arte vê, listando, copiando, insistindo, errando e faltando. 


Um processo de criação segue diferentes fases, a primeira seria provar essa sensação de ausência, de véu negro. Nela se situa o catalisador gesto de organização da obra e de busca dos meios para a sua realização. Esse primeiro estágio é da ordem do inconsciente, regressivo, mas que logo se torna consciente. O processo começaria com um sentimento de vazio, de angústia que se desenvolve no atelier, como algo marcado por um sofrimento de alienação ao mundo exterior, ligando a criação com a separação. A tese de doutorado do artista, intitulada Desenhos miméticos e a tirania da forma, de 2019 no PPGAV-Ufrgs, surgiu dessa angústia.


Paralelamente a essa fase regressiva, o desejo de completude dessa falta aconteceria como um fluxo, uma força reativa. Eis a exposição do V-744 Atelier. Essa bipolaridade entre utopia e melancolia, entre sentimento de solidão, fracasso, erro e recuperação, essa vacilação entre estrutura e colapso fecundariam a obra rebelde por natureza de Richard John. A fase da produção seria seguida pela necessidade de compartilhamento na exposição, cuja abertura foi e segue sendo acompanhada por tantos amigos, alunos, ex-alunos e colegas. Como se a melancolia da criação viesse seguida pela vaidade. O desejo de transmissão desse processo criador através do ensino de arte já tinha sido para ele uma consequência. De ordem afetiva, a autobiografia se transfere à vontade de construir uma obra. Ela possui um desejo de completude que se realizou tanto na criação como na transmissão do conhecimento. Seriam esses dois tipos de desejos que sempre moveram o artista, desde a origem, segundo Daphné Le Sergent. Por trás de tudo estaria o referido princípio da resistência. Resistir a explicações, a uma fácil compreensão. O enigma pode estar na suspensão do conhecimento e na ilusão, no jogo da cópia, entre mimetismo e fantasma. 


A estratégia do jogo como atividade que nos distrai facilmente: prazer da descoberta dos 7 erros, de nossos ou de outros nomes, nos seus desenhos, adivinhações, desmontagens. A criança teimosa que procura um segredo. Imagens que se recusam aos nomes e às palavras, palavras que se recusam aos nomes e às imagens. Os desenhos de Richard John teriam assim uma inocência enganadora e o poder de um espírito crítico, até revolucionário. Desmontar para ver como funciona. Errar para acertar.


Benjamin lembra de um texto de Baudelaire: “A moral dos brinquedos”, que trata da dialética das imagens. Entre a lembrança da infância e o quebra-cabeças, o leitor descobre todo o poder dialético do brinquedo. Um jogo que provoca a iniciação à arte pela comparação. 


Na exposição de Richard John, não só há uma espécie de planicidade dissimulada, mas de resistência irônica que nos leva a um enigma. Uma resistência em que o artista adota a incompletude como regra, a falta na relação palavra-texto. O sentido poderia estar nos vazios, nos interstícios, nas correções com a tinta branca. É algo que para o artista passa pela construção, pelo erro e pela transformação. 


Onde estaria a dimensão do fracasso e da resistência nas imagens? No que consiste o espírito dessa resistência? Algo que resiste, tem a marca do enigma. 


Aline Dias lembra que o fracasso assim nos aproxima do inconcebível, da poesia, da utopia. Ele constrói enigmas, situações equívocas. O fracasso pode ser uma forma de se chegar ao conhecimento. Assim como a arte, o fracasso vive de metamorfoses, de arqueologias, de miscigenações, para se tornar algo que resiste a qualquer agenciamento. Como ervas daninhas que insistem em brotar entre as pedras das calçadas, nas dobras, nos intervalos. Essa resistência irônica é como uma marca do trabalho de Duchamp. 


Tudo na exposição é da ordem do enigma e da resistência e da ironia. Se os desenhos de Richard se recusassem ao mimetismo, eles assim entrariam na ordem do fantasma, do simulacro. São imagens rebeldes, representações paradoxais de uma invisibilidade constante. O que o nosso olho vê, não é o mesmo que nosso cérebro entende, ou resiste a entender. Esse filtro estaria na retina do sábio. 


* Artista visual e professor do PPGAV


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895