Rudi Lagemann: "Às vezes sou general, mas na verdade sou um tenente boa praça"

Rudi Lagemann: "Às vezes sou general, mas na verdade sou um tenente boa praça"

Giullia Piaia

Rudi: "Os amigos aqui do Sul tinham me dito ‘ah tem uma placa com teu filme e teu nome lá’. Aí eu fui lá, entrei e falei com a menina da bilheteria..."

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A nova série da Record TV, “Todas as Garotas em Mim”, conta com a direção do experiente Rudi Lagemann, o Foguinho. Durante um dia de gravações em Gramado, na serra gaúcha, o diretor da produção concedeu uma entrevista ao Caderno de Sábado, onde falou sobre sua história e sobre o novo projeto com a Record.

Quando tudo começou na carreira? 
Eu estudei na Ufrgs. Quer dizer, estudei é um modo de dizer meio anacrônico. Eu estudei Letras na Ufrgs e fui para o Rio. Mas só entrei na Ufrgs para comer no bandejão. Eu já fazia teatro, era a turma do Werner Schünemann, depois virou casa de cinema, que a gente fez Super 8, essas coisas. Então, no primeiro ano que estava lá, os meninos do DCE me arrumaram uma carteirinha para eu conseguir entrar no bandejão. Aí eu disse “mano, eu tenho que entrar oficialmente”. Eu disse bom, eu vou escolher um curso que eu consiga… que não vai ter risco nenhum de eu não entrar, por que no 2<SC120,176> grau eu não fiz as ciências exatas. Eu só estudei clássicos, línguas. Não estudei física, matemática, química, biologia. Fui fazer o vestibular só no raciocínio lógico. Eu estava na fila do bandejão e tinha um casal na minha frente olhando no jornal o resultado. Eu disse “podia me emprestar?”, fui olhando e “ih passei”, devolvi o jornal. Essa foi a minha comemoração de passar no vestibular, já não precisava mais da carteirinha de amigos.

Letras então?
É, tradutor intérprete, que era lá longe. Depois eu trabalhei no Banrisul, com computação, não tinha tempo para ir. Fiquei dois anos enrolando, não fui um aluno exemplar. Depois fiz Jornalismo, aí parei por causa de trabalho. Fui me formar em Relações Internacionais, no Rio. Sou bacharel em Relações Internacionais. Foi uma época que eu queria diplomacia. Eu dirigia publicidade, com 30 e poucos anos. Achei que dava para dar uma virada. Ganhei edital para fazer meu longa e o audiovisual prevaleceu.

E novamente gravando no RS, com a série. Como é isso?
Voltar para cá sempre tem um lado emocional muito forte. Minha família ainda mora aqui no sul, só eu que saí, apesar que eu já saí há 30 anos. Mas assim, tem o emocional de voltar ao RS. Eu encontrei minha irmã, meus irmãos moram lá em Cachoeira do Sul, minha irmã mora em Porto Alegre, meus pais são falecidos. Mas além da coisa do Rio Grande do Sul, tem a questão de Gramado, né? Porque Gramado, quando eu conheci, na época todos eram os garotos, Giba Assis Brasil, Gerbase, Werner Schünemann, Jorge Furtado, toda essa turma, a gente teve uma relação forte com Gramado. O Super 8, “Deu pra ti anos 70”, “Coisa na roda”, “Inverno”, “Verdes Anos”, “Me beija”. E aí tem uma relação de voltar ao lugar em que era garoto, que você tinha todos os anseios, projetos de vida, sonhos, se você vai realizar ou não. Eu voltei quando eu vim com meu longa, em 2006, que foi o “Anjos do Sol” e ele ganhou o festival. Ele ganhou muitos kikitos, então foi bacana. Voltei no ano seguinte para ser do Júri, que é uma tradição do festival, e nunca mais. Em dezembro, dei uma passada rápida aqui para ver as locações, mas agora voltei para gravar. A emoção bate muito forte. Parece ser aquela coisa de jogador de futebol falando quando volta para jogar no time de origem. Mas curioso, por exemplo, eu fui lá no cinema, fui com meu amigo que é o diretor de fotografia, o Tuca. Os amigos aqui do Sul tinham me dito “ah tem uma placa com teu filme e teu nome lá”. Aí eu fui lá, entrei e falei com a menina da bilheteria "queria ver uma placa aí, que disseram que tem meu nome". Ela ficou me olhando de um jeito estranho, virou pro lado, olhou pro gerente. O gerente: "ah, tudo bem, entra aí". Eu fui lá, olhei a placa, estava lá, meu amigo bateu uma foto. Aquele salão do festival, anos e anos, desde garoto até virar profissional, bem-sucedido. Foi genial, o pessoal do cinema também já mudou de atitude. Mas o melhor na minha profissão, no que eu faço, é que eu me considero bem-sucedido e a alegria é não ser famoso. Porque daí eu passo e ninguém sabe quem é. Isso é a melhor coisa do mundo. Você vê seus trabalhos no ar, é o que importa, e não a sua vida no ar. Até para sentar aqui e dar entrevista é difícil, eu sempre fico evitando. Não é muito a minha praia. Eu gosto de gravar, dirigir, mas a coisa da exposição... Eu sei que vocês precisam, então eu venho e ajudo.

Desde quando você está trabalhando com a Record?
Eu fui para o Rio quando eu saí de Porto Alegre, fui tentar fazer cinema, eu era assistente de direção. Fiquei dez anos fazendo cinema, aí veio a crise na época do Collor, acabou a Embrafilme, e fui para a publicidade. Me tornei diretor em publicidade, que foi a transição de assistente de direção para diretor. Eu trabalhei muito com os irmãos Moreira Salles, o Waltinho, de "Central do Brasil" e o João, irmão dele por cinco anos. Eles me tornaram diretor. Eu dirigi uns 500, 600 comerciais. Foi o jeito de ganhar a vida. Aí fiz o meu longa e, por causa dele, o pessoal que trabalhava na Record me chamou para fazer uma novela. Ninguém me conhecia pessoalmente. Faz treze anos. Já fiz doze novelas. Fiz um seriado, o "Conselho Tutelar", fiz novelas contemporâneas, algumas bíblicas. Como diretor-geral, foi "Conselho Tutelar", uma série com bom tempo, fizemos três temporadas. Engraçado, hoje em dia está na Globoplay, que comprou a série que a Record fez. Também foi da Universal Channel, da Fox, então está sempre passando. Fiz duas novelas contemporâneas como diretor-geral. Essa é a primeira que tem um misto de contemporâneo e bíblico. É o primeiro produto híbrido da Record, que você trabalha o mundo contemporâneo, a minha praia, que é onde eu me reconheço melhor e esse mundo bíblico.

Vocês já gravaram quantas temporadas?
Estamos gravando duas inteiras e aí vai emendar na terceira. Tô entregando, por que cenários, tudo, eu tenho que mudar. Então, dou prioridade para isso. Até maio eu termino as duas, aí deve emendar para a terceira. Cada temporada tem um número diferente de episódios. A primeira temporada tem dez, a segunda tem 16, a terceira, 14. Na terceira, no mundo bíblico, tem Roma, Corinto, porto, tem navio. É uma loucura. Uma coisa muito peculiar do projeto é que só em Campinas, onde estamos gravando, eu tenho 102 locações. Aqui em Gramado, eu estou gravando com essa equipe, são 28 e estou fazendo mais 20 só com vídeos e fotos, sem diálogo, em duas semanas. Agora almoço e vou para outra locação. Todo o dia é isso, respiro, me organizo e vamos nessa.

E como é ter essa mistura, enquanto diretor?
Na verdade, esse é o grande desafio e é o que provoca. É o lado bacana da coisa, por que todo o projeto te suscita uma infinidade de possibilidades, de como vai abordar. Um tema, por exemplo, você vai abordar como sátira, como comédia, como drama, que gênero você vai trabalhar para definir o tom, tanto dos atores, quanto o tom da câmera. Se você vai fazer uma gramática cinematográfica mais contemporânea, mais moderna, e o tom dos atores também, é mais realista, naturalista, como é que isso vai funcionar. Nesse trabalho há duas dimensões temporais. Eu disse: "bom o segredo tá na passagem". Então, eu fiquei quebrando a cabeça vários dias, levei um mês e meio. Quando caiu a ficha tava... eu gosto de cozinhar, eu estava lavando coisas, legumes e tal, e pensando, escutando música... opa! É o Match-Cut. O que é um Match-Cut? Na linguagem cinematográfica, o Match-Cut é quando você faz uma rima visual. O Hitchcock usava isso muito, ele fez um filme, por exemplo, com oito planos, que passa nas costas dos atores o tempo todo. Essa passagem é o Match-Cut. Então, eu disse assim: "o meu segredo tá aí. Eu tenho que fazer esse mundo, quando eu saio do contemporâneo e quando eu volto, eu tenho que ter Match-Cut sempre. Eu não posso ficar fazendo o mesmo tipo de Match-Cut. Ao mesmo tempo, eu estou contando, no mundo contemporâneo, a história de uma influencer, que usa muito linguagem de Tik Tok e tal. E a garotada, sem saber, exercita o tempo todo o Match-Cut. Eles não sabem, eles não estudaram cinema, não sabem o que é, mas é o que eles fazem. Uma criança de dez anos, hoje em dia, faz Match-Cuts que Hitchcock choraria. Elas jogam a roupa para cima e a roupa cai "vestida" nelas. Isso é um Match-Cut. Eles fazem passagem, tu estás em uma sala e passa para outro lugar, já entra no outro lugar com outra roupa, usa uma coluna no meio. Match-Cut. Quando eu descobri isso, o projeto começou a se desenhar. Esse desafio, que é o grande desafio de um projeto desse, é o que me empurra, o que me alavanca. O bacana é que, na Record, todos os projetos que eu fiz, eu tive mais liberdade de como fazer, qual linguagem usar, como abordar cada assunto. Nunca me disseram "faz assim". Se você for lá na Record, vai ver que sempre tem alguém da Record acompanhando e olha aqui. Não tem ninguém dizendo faça assim, eles confiam plenamente. Eu falei, claro, para eles "vou fazer esse tipo de abordagem" e eles falaram "é com você". É uma alegria, estou muito feliz, me divertindo aqui. O mundo mudou muito nesses treze anos , o mundo audiovisual. A gente quase veio do analógico para o digital. Tanto a linguagem, um equipamento, eu peguei essa passagem. A minha geração tem 50 anos hoje ou da turma que tem 60. A gente foi fazer com o negativo. A gente pegou a Moviola e foi para o Avid. Montava na Moviola e edita no Avid, usava a câmera com rolo e foi para o cartão. Rolo fita de negativo, cartão. Tudo muda, porque não é só o mecânico, é o jeito de contar histórias.

Como é trabalhar com um elenco jovem?
O meu longa "Anjos do Sol" era com um elenco juvenil. É sempre a coisa de misturar com um elenco experiente. Eu faço questão de fazer os testes de elenco. Vou no estúdio sempre que for preciso. Eu gosto de ver eles em cena e fora de cena, como ele se comportam. Às vezes, se você olha só o edit, "ah a menina é muito legal", mas se olhar fora, tem soberba, empáfia, coisas que não me interessam no projeto. Então, eu defino também aqueles que, além de serem ótimos intérpretes, trabalham para a coesão, pro grupo, pro time. Eles já são quase adestrados, é errada essa expressão, mas assim todos já estão muito com espírito de time, de projeto. Eles respeitam a minha trajetória. Eu falei desde o início "vocês têm aqui uma possibilidade na carreira de vocês, que vocês podem lembrar sempre como um salto". Isso eu falava para a turma de “Rebelde”, eu era da direção de “Rebelde”, uma novela com direção-geral do Ivan Zettel. Eu era do time de diretores e ficava falando sempre com eles, o Ivan também falava isso, claro, sobre eles estarem ali em momento chave. Se você ver o Chay Suede, que tá galã na concorrente, a Mel, que apresenta os projetos dela no GNT, de viagens pelo mundo, o menino que está no BBB. Era uma turma tipo esses garotos. Tem que ter a questão profissional, concentração, como funciona. Eles respondem. Eles têm uma luz, são lindos. Eu brinco, quando você não tem solução de onde vai a câmera, fecha no colágeno. A locação tá feia, dia cinzento... close. Tá resolvido. Corta de um para o outro, são todos bonitos, graciosos. Tem essa linguagem de filme secundarista, quase uns clichês, que a gente trabalha. A menina patricinha, o menino nerd. É bom trabalhar com eles, por que impõem um espírito jovial para o projeto. E como eu gosto de câmera ágil, por exemplo, esse equipamento gimbal, eu trouxe para Record. Eu não uso tripé e eu não uso quarta parede. Então, eu me dou super bem em locação. Mesmo no estúdio eu trabalho em 360 graus, não fica aquela coisa tradicional. A equipe que está comigo tem que ser muito ágil. Eu fiz reunião sobre amanhã (quarta, 30/3), pois vamos no Snowland. Eu entro no estúdio e vou "vai daqui, vai cortar ali". A luz é de cima, os estúdios têm que ser preparados para isso. Nunca vai ter aquela cor careta, a câmera sempre vai estar com a vida. São pessoas que já trabalham comigo há um tempo. Sabem usar o ritmo, como é intenso. Eu fico que nem um sargento aqui. Às vezes um general, às vezes um sargento, mas na verdade eu sou um tenente boa praça.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895