Salve Taba!!!

Salve Taba!!!

Professora e pesquisadora Zilá Bernd recupera texto sobre patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, Tabajara Ruas

Correio do Povo

Tabajara Ruas foi escolhido como patrono da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre em agosto

publicidade

Todos nós que admiramos a escritura majestosa de Tabajara Ruas, nos rejubilamos com a notícia de sua escolha para Patrono da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, de 27 de outubro a 15 de novembro de 2023. Suas obras são de leitura obrigatória para todos os que querem entender o passado do Rio Grande do Sul, com suas histórias que transitam entre o mito e a História com H maiúsculo. Por essa razão, para nós gaúchos, adentrar no emaranhado dos mitos e no entrecruzar de fronteiras para onde nos levam os livros de Tabajara Ruas é, para além de um prazer, eu diria, quase um dever.
Como escreveu Luís Fernando Verissimo (1), em 1995, na apresentação da obra “Netto Perde sua Alma”, “Tabajara Ruas é um escritor com um sentido do épico nas pequenas coisas e do humano no épico”. 


Para homenagear nosso Patrono da 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, reproduzo aqui, artigo que publiquei em 1991 (2) , logo após o lançamento de “Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez” (L&PM, 1990), convidando a todos, com ênfase para os adolescentes – na medida em que o narrador desse livro é um garoto de 13 anos - a revisitar essa obra para descobrir ou redescobrir algumas das obsessões do autor, como os temas ligados à luta, lealdade e morte.  Esse livro de Tabajara Ruas encena, mais uma vez, os propostas recorrentes na obra do autor: a condenação do arbítrio, do abuso do poder, do autoritarismo e da irracionalidade da violência a que podem chegar os seres humanos quando investidos de cargos e funções que lhes conferem autoridade. Fazendo contraponto aos personagens que encarnam o poder autocrático, encontram-se as vítimas deste poder para as quais a única saída digna é a resistência, como se viu na cena antológica — que teve inclusive versão cinematográfica — “O dia em que Dorival enfrentou a guarda” (3).

Em “Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez”, a dignidade de "enfrentar a guarda" é representada em dois momentos nucleares da narrativa: Juvêncio Gutierrez resiste à perseguição e ao cerco, e o pai do narrador enfrenta o delegado, exigindo o corpo de Juvêncio. Estes dois episódios de enfrentamento revestem-se de particular importância no desenrolar da narrativa na medida em que ambos os personagens vivem, de certa forma, à margem da sociedade, um por ser contrabandista e ter vivido longo período no exílio, e, o outro, por ser membro do Partido Comunista em uma época em que este estava na ilegalidade.


O romance pode ser lido como uma narrativa memorialística, valendo-se o autor de um personagem narrador ainda muito jovem. Através da rememoração, efetua-se a redescoberta de cenas da infância vivida em uma cidade da fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina.” A memorialística é, sem dúvida, o gênero que melhor se adequa ao exercício de busca identitária: é pela evocação de passagens quase perdidas da infância que o narrador reordena suas primeiras vivências de amor e de ódio, seus heróis e seus vilões, seus sonhos e fantasias, sua relação com a família, a escola e os amigos. Neste tempo reencontrado, sobressai a imagem do Tio Juvêncio, personagem misterioso e ambíguo que, apesar de fora da lei, é admirado por todos por sua simpatia, audácia e generosidade.


O romance memorial, como forma privilegiada de apropriação do passado, vai se tecendo de materiais díspares como imagens fílmicas, imagens do quotidiano familiar, frases, ideias e valores que estavam em circulação na época. O relato, orientado a partir de um ponto de vista infantil, vai recompondo, deslocando e deformando as lembranças. Assim, os acontecimentos da perseguição e cerco de Juvêncio Gutierrez vêm à tona mesclados com as imagens fílmicas dos velhos westerns que se constituíram na forma principal de evasão e de divertimento do garoto. Depois do processo de filtragem da memória, do cinema restaram as lembranças dos atos heroicos vividos pelos atores do faroeste os quais passaram a povoar seu imaginário de forma a confundirem-se com os da "vida real".


Deste modo, a figura do tio torna-se tão verdadeira e tão inventada quanto a dos personagens cinematográficos. Seu regresso ao Brasil, após o longo exílio, se faz pelo trem que atravessa o pampa e que passando em frente à casa do garoto, incorpora-se às suas fantasias, representando a possibilidade de partir e de voltar, de comunicar-se com o mundo exterior. A chegada do tio por este trem contribui para aumentar a aura de mistério que envolve tal personagem, permanecendo indelével na memória do garoto e prefigurando a sua identificação com o tio. Transformada em mito, a figura do tio entra em relação intertextual com outra figura mítica igualmente fora da lei que encontra, na imensidão do pampa, refúgio e impunidade: Martin Fierro. A associação com Martin Fierro é explícita, pois o autor coloca em epígrafe ao primeiro capítulo uma citação do famoso poema de Hernandez: "Inferno por inferno, prefiro o da fronteira".


No emaranhado de imagens evocadas no exercício de rememoração praticado pelo narrador, predominam as da resistência representadas por Martin Fierro, Juvêncio e, em outra escala, pelo próprio pai. Recompondo os fragmentos desta infância vivida na fronteira, em pleno território do pampa, o narrador evoca a imagem do pampa como uma catedral: "A noite no pampa é uma catedral superposta a outras catedrais, ainda maiores e mais transparentes, entrelaçando-se infinitamente, misturando suas criptas, suas sacristias, seus altares".


Depois de narrar as cenas de violência que se verificaram durante o cerco a Juvêncio, o livro finda com a metáfora da catedral, de certa forma símbolo do mundo, que abriga em seu seio, como uma mãe amorosa, todos os justos, remetendo, talvez, ao desejo do autor de um pampa sem fronteiras, capaz de congregar homens irmanados por causas comuns. "Perseguição e Cerco a Juvêncio Gutierrez" corresponde a uma renovação na identidade da literatura rio-grandense. Nutrindo-se com a seiva das nossas coisas, redimensiona-as num espectro mais abrangente, integrando o fluxo da literatura latino-americana.

1. RUAS, Tabajara. Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez. Porto Alegre, L&PM, 1990.
2 Revista Porto e Vírgula, Porto Alegre; ano 1, n<SC120,176> 3, julho/agosto 1991.
3. RUAS, Tabajara. O amor de Pedro por João ou O dia em Lourival encarou a guarda. Porto Alegre: L&PM, 2ª Ed. 1991.

* Pesquisadora 1A/CNPQ


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895