Se, em 1922, não fomos lembrados, em 2022, somos 60%

Se, em 1922, não fomos lembrados, em 2022, somos 60%

ROBERTA FLORES PEDROSO *

Maria Firmina dos Reis em imagem construída por Waniel Jorge Silva

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O ano de 2022 está marcado por algumas datas significativas para os brasileiros, se não para todos, ao menos, para uma parcela que interroga o modelo e a construção de nação que se constituiu no Brasil. Essa parcela referida são os negros, indígenas e outros corpos não brancos que tiveram suas identidades negligenciadas e escamoteadas em detrimento de outras.

Esse ponto de vista, encontramos também na literatura. A semana de Arte Moderna, por exemplo, que completou 100 anos, trazia no seu bojo a urgência de mudanças na cultura do país, como também, a defesa de novas estéticas artísticas alinhadas com o futuro. A história nos mostra que esse movimento tão valoroso, principalmente, para o Estado de São Paulo, foi construído dentro de um contexto burguês e elitista, feito por e para eles.
Nessa perspectiva, a pretensa revolução cultural e artística de 1922 não se consagrou como referencial para inserção de escritores negros autodeclarados no projeto modernista. Em contraste, consagrou-se o protagonismo de gênese eurocêntrica.
A respeito disso, podemos entender por que artistas de grande prestígio como Lima Barreto e Lino Guedes, dois artistas negros e pobres, que denunciavam as crenças racialistas, não corresponderam aos critérios para integrar a turma dos “modernistas” paulistas.
As lacunas desse movimento reforçam e dizem muito sobre a construção do Brasil que, atualmente, se esforça para que não se repitam os mesmos erros e enganos de 1922.
Toda festa literária, seja ela em grandes espaços, seja em pátios de escolas, deve ser celebrada, porque, nesses ambientes, existe a possibilidade do desfile de expressões literárias invisibilizadas ou silenciadas. 
A tradicional Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em sua 20<SC120,170> edição, traz, pela primeira vez, uma autora negra como homenageada. De 23 a 27 de novembro, os holofotes estarão voltados para Maria Firmina dos Reis, autora do primeiro romance abolicionista – “Úrsula”, de 1859 – da língua portuguesa. Além disso, seu livro é considerado o primeiro romance publicado por uma mulher negra em toda a América Latina, de acordo com pesquisas realizadas pelo prof. Eduardo de Assis Duarte (UFMG), que também faz parte do grupo de escritores negros a integrar as palestras da Flip/2022.
A homenagem torna-se significativa por vários motivos, entre eles, a posição marcada de Maria Firmina dos Reis. Ela é a quarta mulher a receber a deferência, como escritora homenageada, em 20 anos. Maria Firmina dos Reis, também, está sendo tema de duas mesas de debate na programação principal da Flip, bem como ter sido parte de um ciclo de palestras em parceria com o Sesc-São Paulo, realizado em outubro deste ano. O evento contou a presença do professor e crítico literário Luiz Maurício Azevedo e da jornalista e escritora Fernanda Bastos, ambos debatedores são oriundos do Rio Grande do Sul.
Diferente de outros eventos literários, nesta edição da Flip de 2022, contamos com 60% de escritores negros e indígenas, a essa mudança extraordinária, é possível conferir os méritos as reivindicações que, desde 2016, circularam com um manifesto crítico, referente à ausência de escritores negros na Festa Literária Internacional de Paraty.
A homenagem à escritora maranhense Maria Firmina dos Reis demonstra o reconhecimento de que a pesquisa acadêmica é um mecanismo essencial para que possamos, como destaca Grada Kilomba, descolonizar é, notadamente, reescrever uma história cultural e literária escrita equivocadamente. A obra de Firmina conseguiu vencer a barreira do silêncio mediante pesquisas acadêmicas a partir do trabalho hercúleo de Nascimento Moraes Filho, autor da primeira biografia de Maria Firmina dos Reis, em 1975. Tais revisões e investigações encontraram o caminho para conhecer, entender e se surpreender com a escrita literária dessa autora que rompe com os estereótipos e com a narrativa da subalternidade, ditados pela sociedade letrada e escravista. 
Essas pesquisas contribuíram de maneira valiosa para trazer a lume a escritora maranhense que ficou renegada por mais de cem anos, intencionando que outras histórias de apagamento, como a de Maria Firmina dos Reis, não a ser repetida. Tais estudos revelam o reconhecimento social do protagonismo da autora que, de forma pioneira, apresenta o primeiro diálogo entre Brasil e África, nas vozes narrativas dos escravizados Suzana, Túlio e Antero, no romance “Úrsula”.
Atualmente, há cerca de sessenta teses e dissertações sobre a vida e obra de Maria Firmina dos Reis. Esses estudos ainda são insuficientes, pois, diante do cânone literário, mesmo sendo minoria em gênero e cor, a escritora maranhense apresenta um pensamento divergente, o que a levava a ser ignorada ou até mesmo excluída.
A autora rompeu barreiras impostas pela sociedade da época, que destinava à mulher, unicamente, as atividades restritas ao espaço doméstico. E, mesmo diante desse muro patriarcal e segregacionista, a destemida Maria Firmina publica romance, contos e poemas em pleno período da escravidão brasileira.
Apesar desse panorama, pode-se afirmar que Firmina construiu a sua autoria fundamentada em questões prementes no século XIX. Ela escreveu com meticulosidade porque tinha conhecimento do público-leitor e do lugar do negro na sociedade brasileira. Apesar disso, lançou mão da crítica e opôs-se à necessidade dos romances da época em transformar o escravizado num estrangeiro, como afirma Toni Morrison em “A Origem dos Outros”. 
No romance “Úrsula”, Maria Firmina dos Reis, provoca o leitor a ter empatia por esse estrangeiro representado na obra por três escravizados e repulsa pela instituição escravagista. Em sua escrita, podemos perceber um notável cuidado em mostrar uma narrativa que deriva de um lugar definido por classe, gênero e etnia. A exegese firmininiana acessa a uma série de conexões sobre conceito de liberdade, revisão da ideia hegemônica de nação, marcando o seu pertencimento social e autoral em 1859. Isso deflagra o abolicionismo das letras negras e brasileiras.

* Professora da Rede Básica de Ensino de Camaquã. Autora dos comentários do livro “Maria Firmina dos Reis - Clássicos Comentados” (Editora Leitura XXI).


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895