Simulacros e simulações

Simulacros e simulações

Por Juremir Machado da Silva*

Caderno de Sábado

Em 1981, Jean Baudrillard publicou “Simulacros e simulação”, que inspiraria o filme “Matrix”

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Tive a alegria de ser amigo de Jean Baudrillard, um dos homens mais inteligentes que conheci até hoje. Organizei algumas vindas dele a Porto Alegre. Bebi com ele em cafés de Paris. Quando ele estava próximo da morte, em 2007, telefonei para ele. Perguntei como estava. Respondeu sem autopiedade: “Como pode estar alguém que vai morrer?” Pensador da ironia e dos paradoxos, Baudrillard não queria ser guia nem guru. Não pretendia que suas obras servissem de manual para melhorar a mídia. Grande conhecedor da cultura alemã, interessado por temas da comunicação, não podia ser resumido a herdeiro da Escola de Frankfurt, corrente que consagrou o conceito de indústria cultural, de Adorno, Horkheimer e Walter Benjamin. Nem ao viés da sociedade do espetáculo do seu contemporâneo Guy Debord. Era tudo isso e muito mais. Com estilo.

Em 1981, publicou “Simulacros e simulação”, que inspiraria o filme “Matrix”. Baudrillard ria quando o apresentavam assim. Sabia que era dar mais importância ao filme do que ao livro. Marxista estruturalista na juventude, niilista na última fase, Baudrillard pensava a contracorrente. Em “À sombra das maiorias silenciosas”, sugeriu que as massas não se deixam manipular e tudo neutralizam pela indiferença. A sua obra maior, contudo, é mesmo “Simulacros e simulação”. É nela que insinua de vez o desaparecimento do real. Na simulação, imita-se um real. Finge-se ser o que não se é. No simulacro, tudo é signo. Não há mais qualquer real como referência. O simulacro é o marketing total. 

Na simulação, corrige-se o candidato para que ele pareça ser melhor do que de fato é. No simulacro, tudo é artificial. Nas pinturas rupestres, simulava-se um animal, sempre inferior ao real. Na era industrial, o real começou a perder para o maquinado. No virtual, o real desaparece de vez. Tudo se acelera. O desaparecimento se dá por saturação, proliferação, excesso. A teoria literária dos anos 1960 matara o autor. Pronta a obra, o autor morria. No excesso, quando todos são autores, a obra é que morre. Importa mais quem assina. Se Machado de Assis começou a sua trajetória cultural na “Sociedade Petalógica” de Paula Brito, Jean Baudrillard sempre se reivindicou patafísico. Sonhava com algo que não pudesse ser medido por valor de troca, a não mercadoria por excelência, aquilo que se faz por si e que não se vende. 

“Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência. Mas é mais complicado, pois simular não é fingir”, escreveu. O fingidor inventa-se uma doença que não sente. O simulador experimenta os sintomas. O simulacro é a consequência sem a causa, o efeito sem a necessidade de um gerador. A impostura tornada hiper-real, o replay do gol mais real do que o real, o cartão postal sem a imagem natural. 

Jean Baudrillard definiu-se em “Simulacros e simulação”: “Ser niilista é levar, até ao limite insuportável dos sistemas hegemônicos, este vestígio de irrisão e de violência, este desafio ao qual o sistema é obrigado a responder pela sua própria morte, então eu sou terrorista e niilista em teoria, como outros o são pelas armas. A violência teórica, não a verdade, é o único recurso que nos resta”. Quando todos dizem que a verdade não existe, nem mesmo a contida nesse enunciado, não há mais referente nem realidade. Quanto todos enganam, não há mais enganados nem enganação. Houve um tempo em que filósofos acreditavam na verdade, escritores apostavam em critérios de qualidades intrínsecos à obra, jornalistas buscavam fatos. Quando tudo é visto como narrativa, não há mais definição em última instância. Se Baudrillard não o disse, eu me atrevo a dizê-lo: entramos na era do convencimento e consequência. Se me deixo convencer, vivo, por consequência, de uma maneira e não de outra.

Não haveria mais belo, nem bem e nem verdadeiro. Só existiria o que alguém acha belo, vê como bem ou entende como verdadeiro. Essa ideia tornou-se a verdade dominante que nega a existência de uma verdade. Se for assim, o terraplanista pode sentir-se à vontade para defender o seu “ponto de vista”? O negacionista é um produto do reino dos simulacros. Jean Baudrillard não aplaudia nem censurava. Constava o avanço do pior. Aprende-se com ele a explicitar paradoxos e a salvar-se pela ironia.

*: Jornalista, sociólogo, escritor e professor


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895