Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor

Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor

Diretor teatral Luciano Alabarse apresenta a sua nova montagem que estreia dia 9, às 20h, na capital gaúcha

Luciano Alabarse *

Espetáculo "Esperando Godot" inaugura o Teatro Oficina do Multipalco Eva Sopher do Theatro São Pedro, com sessões nos dias 9, 10 e 11, às 20h

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“Esperando Godot”, apontada como a peça mais importante do século XX, estreou em um pequeno teatro parisiense, em 1953, ano em que nasci. Ou seja: está prestes a completar 70 anos, como eu. O irlandês Samuel Beckett, autor do texto, em sua trajetória pontuada por romances, contos e peças de densidade incomum, ganhou inclusive o Prêmio Nobel de Literatura, em 1969. Uma das primeiras obras teatrais de Beckett, “Esperando Godot” quebrou tudo. As unidades aristotélicas de ação, depois dele, nunca mais foram as mesmas. Séculos de teorias teatrais foram sacudidos. Novas gramáticas de palco se impuseram. 

Longe de ser recebido com pompa e circunstância, o texto foi acolhido com uma frieza hostil por parte da crítica europeia. O reconhecimento de sua importância foi lento e gradativo. A ideia de que a peça estaria alinhada com as de Ionesco, propagada por Martin Esslen em sua obra “O Teatro do Absurdo”, foi perdendo força ao longo dos anos; a obra de Beckett foi ganhando novas leituras e contornos. Simples, indecifrável e complexa, a peça definitivamente não comporta análises superficiais e/ou conclusões definitivas.

Importantes diretores brasileiros, como Antunes Filho e Gabriel Villela, entre outros, já dirigiram o texto famoso. Dezenas de montagens depois, e depois da decisão de encarar mais uma vez o ofício da direção teatral, minha pergunta central, como encenador, foi: como montar Samuel Beckett e, especificamente, “Esperando Godot” nos dias de hoje? Para responder minha própria indagação, mergulhei no estudo e análise das centenas de ensaios, teses e artigos que se debruçam sobre a obra.

Ideia corrente no meio teatral, a suposta intolerância do autor à alterações em suas minuciosas indicações de movimento cênico, foi uma das primeiras certezas que se mostraram inconsistentes. Quem me ajudou nessa tarefa foi o próprio Beckett, ele mesmo diretor de vários de seus textos. O “diretor” Beckett ensinou muito ao dramaturgo famoso, e deixou registradas suas sugestões de alteração em cadernos detalhistas que modificavam suas próprias indicações originais. 

E me coube reconhecer que um texto, por mais clássico e imponente, é só isso: um texto - a ser encenado com desassombro e inquietação. O texto sempre é a figura central para a definição das metas artísticas da empreitada. Com “Esperando Godot” não foi diferente. Seu tema central está definido desde seu título. É a “espera” o elemento a unir os caminhos e descaminhos dos personagens. Erráticos, ansiosos, violentos, encurralados entre esperanças e sonhos frustrados, os personagens esperam Godot, que ninguém sabe exatamente quem é. O próprio autor desautorizou a ideia de que Godot seria Deus, tese recorrente. Ele afirma: “Não sei quem é Godot. Se soubesse, eu diria.”

A indefinição do espaço cênico, a falta de referência geográfica, a incerteza da chegada desse Godot misterioso - tudo reforça um repertório de suposições e expectativas, que não comporta conclusões. O tempo de Beckett parece repetitivo e soberano. Tempo sem tempo. Os lapsos de memória, comuns a todos os personagens, embaralham cronologias afirmativas. Os personagens mostram as repetições circulares de suas vidas, e provocam a sensação de que estamos revendo os mesmos acontecimentos em dias temporalmente diferentes. O tempo e a memória são elementos tangíveis; aparecem e se confundem. Mas, pela rubrica indicativa no início do segundo ato, não há dúvida: “dia seguinte, mesma hora, mesmo lugar”. Os personagens de Beckett não interligam futuro nem passado: são o que são, hoje.

Linneu Dias cravou uma clara definição para a peça. Chamou “Esperando Godot” de “uma comédia atroz”. Participou de uma montagem local, em 1958, que o reuniu a Paulo José, Paulo César Pereio e Luiz Carlos Maciel, este também o diretor da montagem. Com cinco anos de idade, essa eu perdi; mas devorei o ensaio de Maciel, “Samuel Beckett e a Solidão Humana”, que termina com um poema antológico de T.S. Eliot: “É assim que o mundo termina. É assim que o mundo termina. É assim que o mundo termina. Não com um golpe, mas num soluço.” Participar da programação de abertura do Teatro Oficina do Multipalco Eva Sopher é um momento feliz.
Beckett não recomendava a opção de um elenco feminino para dar conta de seus personagens. Segundo ele, Vladimir sofre de próstata e uma mulher não sabe o que é isso. Setenta anos depois, tenho certeza de que teria, mais uma vez, mudado de opinião. Sandra Dani, Arlete Cunha, Janaína Pelizzon, Lisiane Medeiros e Valquíria Cardoso formam um dos mais harmoniosos elencos com que já trabalhei. Na equipe, Angela Spiazzi, Jaques Machado, João Fraga, Maurício Moura, Julio Appel, Manu Goulart e Zé Adão Barbosa me dão fôlego e suporte. Somos um bando que ri e fala sério, se diverte e se assusta. Não é para menos: estamos esperando Godot.

* Diretor teatral


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895