Transcendendo a colonialidade: a decolonialidade

Transcendendo a colonialidade: a decolonialidade

Professora e pesquisadora Zilá Bernd destaca o tema da decolonialidade no Caderno de Sábado

Correio do Povo

Obra "Batalha de Santo Domingo", do artista January Suchodolski, que trata da revolução haitiana e é propriedade do Museu do Exército Polonês

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Decolonial não se confunde com “descolonização”. Enquanto descolonização remete à superação do colonialismo, a “decolonialidade indica exatamente o contrário e procura transcender a colonialidade, a face obscura da modernidade, que permanece operando ainda nos dias de hoje em um padrão mundial de poder” (Ballestrin, 2013).

Falamos em transcender para significar: ir além dos limites, extrapolar, exceder, o que é mais do que superar, que remeteria tão somente a transpor, suplantar. Portanto, a decolonialidade indica uma transformação, um redirecionamento de determinado acento epistêmico.

Muitas foram as vozes que reagiram ao sistema colonial. Desde as insurreições dos escravizados, o sistema colonial foi - em todos os territórios das Américas, Ásia e África onde foram implantados – alvo de manifestações, de críticas e tentativas de desconstrução. A rebelião dos escravos no Haiti, iniciada em 1791 e só finalizada em 1804, quando foi proclamada a Independência, foi talvez uma das mais importantes manifestações contra o colonialismo e a escravidão nas Américas, caracterizando um gesto fundacional de oposição ao colonialismo francês nas Américas. Tentativa de descolonização feita por aqueles que podemos chamar, com Édouard Glissant, de migrantes nus, ou seja, aqueles que foram trazidos à força da África nos porões dos navios negreiros. Como os traficantes de escravos evitavam colocar nos mesmos navios, escravizados que falassem a mesma língua, durante a travessia, se dá a morte de muitas línguas africanas.

Édouard Glissant se questiona: o que acontece com este migrante? “Ele recompõe, através dos rastros/resíduos, uma língua e manifestações artísticas, que poderíamos dizer válidas para todos” (Glissant, 2005, p. 19). É interessante salientar que a partir do pensamento dos rastros/resíduos, se constituiu uma dimensão nova, oposta ao que o autor chama de “pensamento de sistema”, ou seja, aquele que vigora na ordem colonial, ao qual o “pensamento dos rastros/resíduos” irá se contrapor. Esse pensamento corresponde às linguagens recriadas pelos escravos no novo mundo que irão se contrapor à falsa universalidade do “pensamento de sistema”, ou seja, do colonizador.

O fenômeno do surgimento de novas linguagens - provenientes do contato de escravos de diferentes regiões da África, com culturas e línguas distintas - irá originar o que Glissant chama de crioulização, a qual só se realiza quando os elementos culturais colocados em presença uns dos outros são obrigatoriamente equivalentes em valor. Tal contexto gera as condições para que a crioulização se efetue realmente (2005, p. 21).

Assim, aquilo que Édouard Glissant chama de “pensamento de sistema”, corresponde à vigência do colonialismo, enquanto o “pensamento dos rastros/resíduos”, instaura a “decolonialidade”. Se essa premissa for verdadeira, podemos afirmar que tivemos manifestações de decolonialidade, desde os primeiros momentos da empreitada colonial nas Américas quando escravizados de diferentes origens entraram em contato entre si e com os autóctones.

É ainda, o mesmo autor, que é romancista, poeta e ensaísta, nascido na Martinica, na região do Caribe francês, quem nos alerta que: enquanto a crioulização é imprevisível, os efeitos da mestiçagem podem ser calculados, logo, “a crioulização é a mestiçagem acrescida de uma mais-valia que é a imprevisibilidade” (Glissant, 2005, p. 22)

Por uma poética da Relação

Nas regiões que estiveram sob o sistema colonial e escravista, situações em que os elementos culturais são colocados em relação e alguns são inferiorizados (como a cultura dos escravos), enquanto outros são valorizados, como a cultura dos colonizadores, a crioulização não se dá verdadeiramente. Nessa medida, a grande lição glissantiana é aquela que exige que elementos heterogêneos colocados em relação se intervalorizem, ou seja: que não haja degradação do ser no contato e na mistura. A crioulização é, portanto, imprevisível, diferente da mestiçagem, em cujo processo, os efeitos poderiam ser calculados.

Opondo-se veementemente ao pensamento colonial (pensamento de sistema), Glissant propõe que nos aproximemos do pensamento do rastro/resíduo, que não seria nem sistemático, nem dominador. A decolonialidade só se realiza por inteiro, no imaginário dos rastros e dos resíduos o qual é consubstancial à Poética da Relação no mundo atual, que pressupõe a função emancipatória das literaturas dos povos ditos periféricos diante da ameaça de uniformização das culturas.

Ao finalizarmos essa brevíssima reflexão sobre tema tão amplo e complexo, lembremos que os processos de mestiçagem cultural têm início nas Américas com a chegada dos primeiros navegadores e, posteriormente dos colonizadores, prosseguindo até os dias de hoje. Assim enquanto a palavra mestiçagem designa as misturas efetuadas em sociedades multiculturais, nos países anglófonos esse termo foi substituído por “hibridação e/ou hibridismo cultural”. Assim, segundo a pesquisadora Eurídice Figueiredo, “o mundo se torna mestiço, ou se criouliza ou ainda se hibridiza, na medida em que os encontros inter e transculturais são uma realidade” (2021, p. 240).

Referências:

BALLESTRIN, Luciana. In: Luciano Gallas e Ricardo Machado. Para transcender a colonialidade. IHU on line Revista do Instituto Humanitas, Unisinos, RS. p. 1-9. 4 de nov. 2013.

FIGUEIREDO, Eurídice. Créolisation, métissage, hybridisme, transculturation. IN: BERND, Z.; ANDRÈS, B, orgs. D´Haïti aux trois Amériques ; Hommage à Maximilien Laroche. Québec: Grelca, 2021. Col.Essais, n. 22.

GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: UFJF, 2005.


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