Translações em ecossistemas artificiais

Translações em ecossistemas artificiais

Mateus Nunes *

Permeável Jealousy’ (2018) reafirma o estreito diálogo que a prática escultórica de Acosta mantém com a arquitetura

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Desde o título de sua exposição, Daniel Acosta (Rio Grande, 1965) já afirma que se preocupa com as relações com o espaço. “Embutidos, Permeáveis, Topológicos, Rotores”, na Ocre Galeria, apresenta uma espécie de retrospectiva taciturna: lista, de forma analítica e precisa, quatro operações do artista gaúcho no processo de composição de suas obras e na construção de uma poética espacial, incorporando-as em seu título. A sumarização de uma produção ativa por quatro décadas aponta quatro tópicos que também podem ser lidos como lições, demonstrações efetivas da potência expressiva da manipulação da matéria na reconfiguração do espaço.


Nos trabalhos expostos, Acosta explora uma gama de materiais familiares em sua gramática visual: compensado, MDF, fórmica, laminados, madeira maciça e argamassa cimentícia. Com materiais de alta plasticidade, o artista demonstra seu interesse ecológico no sentido amplo: os conflitos e as intersecções da artificialidade nos tempos pós-industriais, o questionamento da ordem do natural, do espaço dado. As obras funcionam em um ecossistema relacional, em topografias circundantes que instigam o observador a explorarem-nas em diversos ângulos, em múltiplas distâncias.
Acosta revisita, sem referências visuais diretas, o legado moderno latino-americano – seja ele cinético, como em Willys de Castro; seja ele penetrável, como em Hélio Oiticica – ao incorporar no processo de fatura de suas obras princípios de movimento e de deslocamento no espaço. Pensa o objeto artístico – escultórico, nesse caso – através de sua permeabilidade, como artistas modernos propuseram com trabalhos penetráveis, aproximando-se também de elementos vazados como muxarabis e cobogós. Esses dois últimos, além de serem elementos arquitetônicos “entre”, que não se enquadram nem como cheios, nem como vazios, são respostas à observação ambiental e à preocupação das sensações humanas em um espaço, sobretudo quanto à temperatura e à luminosidade, ocasionadas pela incidência solar e pelos fluxos de ventilação.


Os trabalhos “Permeável Transverso” (2023) e, principalmente, “Permeável Jealousy” (2018), reafirmam o estreito diálogo que a prática escultórica de Acosta mantém com a arquitetura. Portam-se no espaço expositivo como elementos construtivos, como janelas com aparatos de proteção luminosa ou paredes-biombo, permitindo a passagem parcial de um espaço a ser observado do outro lado, mas colocando-se como obstáculo físico na circulação pela escala humana. Proporciona interações entre pessoas que se veem através da obra, por ela atravessadas, em um contato possível pela separação. O trabalho autoportante, no meio da galeria, retoma discussões que o artista fagulha a partir da ativação de espaços públicos para convivência social, como espaços penetráveis na Praia do Cassino ou em vias urbanas de grande fluxo em capitais brasileiras.


Nesse espaço ambíguo, dinâmicas de multidimensionalidade e planaridade coabitam. Seus trabalhos de fórmica que emulam entes da fauna ou imbricadas paisagens florestais ampliam as discussões poéticas em torno da construção da imagem, da interrogação da paisagem, da revalidação da natureza. Nas duas variações cromáticas de “Paisagem de Evasão” (2021), Acosta recria uma malha vetorizada que reproduz uma imagem de mata em profusão vegetal em blocos sólidos de cor, recortados precisamente por máquinas a laser, mas justapostos um a um manualmente, como num grande quebra-cabeça irregular e mapeado. Além de discutirem sobre interações de corpos cromáticos, as obras são envoltas por um elemento que confunde através do diálogo com a habitual moldura, por estar nos limites marginais do trabalho e por simular a textura de madeira. Permitem uma portabilidade da paisagem, como discute em trabalhos posteriores com técnicas similares. Em “Estimado Selvagem (Leão)” (2008), reproduz em marchetaria a silhueta do imponente felino em repouso ao chão, com vestígios de rala vegetação circundante que insinua resquícios de natureza limitados por uma artificialidade atroz. Um indomável leão e a fugaz floresta são embutidos em trabalhos laminados que são domesticados na bidimensionalidade, acalmados em sua fúria volumétrica. “Paisagem de Evasão” e “Estimado Selvagem (Leão)” abordam também o enaltecimento de um grupo de artistas contemporâneos – nomeadamente minimalistas nova-iorquinos – acerca dos louros industriais e da negação presença de algo tão fetichizado: a mão do artista, agora distante, sem tocar o trabalho, mas orquestrando-o, projetando-o.


Desse modo, as obras lembram-me de uma “natureza domada pela forma”, como propõe Claude Lévi-Strauss em seus “Tristes Trópicos” (1955); mas, além disso, me ressoam a bem-humorada e irônica afirmação de Paulo Mendes da Rocha em 2002 de que “a natureza é um trambolho”, que “ela só serve transformada pelas nossas mãos”. Os três – e aqui já incluo Acosta – não predestinam a natureza à magnificência da interferência humana, em uma eleição arbitrária e hierárquica no topo da cadeia predatória que claramente se torna catastrófica a cada dia, mas acentuam os engenhos intelectuais de compreensão e operação espacial. Essas engrenagens são postas não somente em seus aspectos físicos, técnicos e geométricos, mas em suas chances de canalizarem experiências instigantes, de provocarem relações com/no espaço.


“Os Rotores” (2023) – melhores trabalhos da exposição, afirmo –, dispostos ao lado de frondosas árvores no jardim de pedras da galeria, apresentam-se como invasões quase alienígenas em uma paisagem orgânica, portando certa estranheza pelo contraste da matéria e pela rígida geometria. Essas obras retiram o eixo de rotação do espaço, como Acosta fez em “Rotorama: Sistema de Giroreciprocidade” (2017), escultura-instalação no Octógono da Pinacoteca de São Paulo, e colocam-no em torno do objeto: para fruí-los, convida a órbita do espectador em torno deles, a desvelar o que se deduz já à distância: sua uniformidade formal. Os Rotores criam pontos referenciais para tais transformações espaciais, discutindo problemas tectônicos, profundamente arquitetônicos. Sua translação radial relembra os tratados de arquitetura da antiguidade clássica e do Renascimento, obtendo composições formais a partir de desenhos de perfis com linhas côncavas e convexas, como nas secções de capitéis e entablamentos dóricos. Essa peça, teoricamente ornamental, se ampliada em escala, pode tornar-se um edifício, como o projeto futurista de “Old Man River’s City” (1971) do estadunidense Buckminster Fuller – que, por levar a forma a tantas instâncias, era considerado não somente arquiteto e designer, mas inventor. Mais que um interessante resultado formal, complexo por sua síntese, Acosta depõe uma provocação espacial: um ornamento pode tornar-se uma cidade. É a esse tipo de provocação cerebral que seu trabalho se propõe e que a exposição “Embutidos, Permeáveis, Topológicos, Rotores” endereça.

Pesquisador e curador. Doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa, desenvolve pós-doutorado em História da Arte e da Arquitetura na USP. Professor do MASP, tem seus textos frequentemente publicados em revistas de arte, como Artforum, ArtReview, Flash Art, seLecT, Terremoto e ZUM. 386

 


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895