‘Ubu Tropical’ nos 46 anos do Ói Nóis Aqui Traveiz

‘Ubu Tropical’ nos 46 anos do Ói Nóis Aqui Traveiz

Artigo de Paulo Flores*

Correio do Povo

Os bufões do Ói Nóis Aqui Traveiz contam a história do Pai Ubu, de Alfred Jarry

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A personagem Pai Ubu foi criada pelo francês Alfred Jarry (1873-1907), considerado o precursor do teatro contemporâneo. Jarry fundou uma nova concepção estética e ideológica de onde beberam as vanguardas do século XX, como dadaístas, surrealistas, o teatro do absurdo, e grande parte do humor grotesco atual.

Jarry desenvolveu uma interessante saga com as peças “Ubu Rei”, “Ubu Cornudo”, “Ubu Acorrentado” e “Ubu na Colina”, de comédia bufa e às vezes, escatológica e absurda. O personagem Pai Ubu surgiu de uma brincadeira de alunos de uma escola satirizando o seu professor que foi transformada em um teatro de bonecos.

Anos depois, subiu ao palco em Paris tendo uma grande repercussão. É com a sua peça “Ubu Rei” (1986), de personagens grotescos, narrativa não linear, cenários fantásticos e um humor mordaz, que Jarry se torna conhecido. Jarry desejava desenvolver um teatro poético, com uma linguagem autônoma, livre de psicologismo e cenários realistas. Os seus escritos satirizam a sociedade burguesa e exaltam a imaginação, a síntese e a abstração.

Alfred Jarry propõe uma ruptura com a noção de personagem do teatro da época, pois a forma naturalista não permitia o estranhamento pretendido pelo autor. Era necessário repensar a construção da personagem e a relação ator/personagem. Para conseguir desvincular a sua personagem do homem comum e do "histórico”, Jarry propõe a manutenção de uma das características originais de Pai Ubu: ser uma marionete. As noções de personagem-máscara e personagem-marionete, associadas a Pai Ubu, tornaram-no capaz de absorver inúmeras referências desde a sua gestação. Esse processo de absorção continuou após o seu nascimento e até os dias de hoje, a personagem continua acumulando novas informações.

Personagem ambicioso, covarde e irracional, o lendário Pai Ubu antecipa, em chave humorística, algum dos governantes autoritários e dementes que surgiram no último século. Os desmandos do governo anterior e o retrocesso social e cultural que se viveu nos últimos anos no país levou a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz a escolher esta personagem para a sua nova criação para teatro de rua. Os atuadores começaram a sua pesquisa sobre Pai Ubu ainda durante a pandemia em 2021.

Neste ano desenvolveu um Seminário e uma Oficina sobre a relação da personagem de Jarry com o Tropicalismo e o conceito modernista de Antropofagia criado por Oswald de Andrade. Dando seguimento ao estudo apresentou nas ruas a intervenção cênica Parada Ubuesca e em 2022 criou e produziu um filme curta metragem. Durante 2023 desenvolveu a criação e montagem de “Ubu Tropical” que estreou no dia 3 de março, às 17h, no Parque da Redenção, próximo do Monumento ao Expedicionário. Nos próximos domingos, dias 10 e 17, volta a se apresentar no Parque da Redenção e nas quartas-feiras de março estará no centro da cidade.

A encenação do Ói Nóis Aqui Traveiz parte da figura do bufão. São os atuadores como bufões que vão contar a história do Pai Ubu. “Ubu Tropical” narra as peripécias de uma personagem cruel que incitado por Mãe Ubu assassina o Rei da Polônia e coroa a si mesmo, iniciando uma longa série de atrocidades que inclui traições, roubos, corrupção e assassinatos. Os bufões estão ligados historicamente às figuras dos bobos da corte e dos histriões, são marcados pelo signo negativo de estar fora do espaço social organizado. Considerados inaptos, limitados ou absurdos para a sociedade, são seres à margem, que não fazem parte desse mundo. Muitas vezes sua inépcia se metamorfoseia em agilidade, sua bestice em sabedoria, sua malícia em astúcia, suas elucubrações em uma mensagem clara. Sua presença em cena está sempre atrelada à ideia de um duplo paródico da figura da autoridade, uma vez que representa o avesso do personagem socialmente reconhecido e aceito como o detentor do direito ou da norma aceita pela sociedade. A personagem Pai Ubu representaria um tipo de “bufão selvagem”, que assume o poder através da força bruta e passa a representar um perigo social e político. A provocação de Ubu chega inclusive ao universo da linguagem inventando palavras, e chamando atenção para um mundo aparentemente ordenado e progressista, mas que a todo momento cria os seus brutais Ubus.

O novo espetáculo de teatro de rua do Ói Nóis Aqui Traveiz faz parte de seu projeto de Arte Pública, atividades artísticas acessíveis a todas as pessoas independente de classe, etnia, raça, gênero e demais marcadores sociais. Na sociedade de consumo, a rua significa a libertação do teatro enquanto mercadoria, já que busca o envolvimento direto entre o público e a criação artística. Representa uma forma de escapar do sistema capitalista e do aparelho cultural, não apenas trazendo para cena uma estética e uma ética libertária, mas também uma reavaliação completa dos meios de produção da cultura hegemônica.

Atuar nas ruas e nas praças públicas de forma gratuita. Atuar como uma forma constante de se compreender e repensar a vida, no espaço onde a vida acontece com maior agilidade, diante de um público vivo, é quando o teatro se torna revolucionário.

Ao completar, neste mês, 46 anos de trajetória (estreou seu primeiro espetáculo em 31 de março de 1978), com atividades de intercâmbio, compartilhamento, preservação da memória das artes cênicas, oficinas para a formação, e criação de novos espetáculos de teatro, a Tribo reafirma o seu compromisso com a democratização da arte. Na agenda de apresentações para as próximas semanas estão “Violeta Parra – Uma Atuadora” no dia 16, na inauguração do Anfiteatro Violeta Parra, em Viamão; e no dia 23, no Festival Maré de Março, em Salvador, Bahia; e “O Amargo Santo da Purificação – Uma Visão Alegórica e Barroca da Vida, Paixão e Morte do Revolucionário Carlos Marighella”; no dia 29, no Parque Mascarenhas de Moraes, no bairro Humaitá; e no dia 31, no Parque da Redenção.

A Escola de Teatro Popular da Terreira da Tribo, também neste mês, abre inscrições para diversas oficinas: Para Formação de Atores, Teatro Ritual, Teatro Livre, e ainda Oficinas nos bairros Restinga, Humaitá e Tristeza, todas abertas e gratuitas. Nos dias 18 e 19 realiza dois webinários com transmissão pela internet, um na área da Formação e outro na de Criação, reunindo professores, pesquisadores e diretores de diferentes cidades do país.

O Ói Nóis Aqui Traveiz vem realizado ações para a musealização do seu acervo, assim como a pesquisa e publicação sobre a memória de grupos teatrais com longa trajetória de trabalho continuado no Brasil. No segundo semestre vai ser aberto ao público o Museu da Cena – Ói Nóis Aqui Traveiz, na zona sul de Porto Alegre, com uma exposição fotográfica sobre coletivos teatrais longevos e a publicação do livro “Memória do Teatro de Grupo Brasileiro”, de autoria do pesquisador e professor Clovis Massa. Ações importantes para o processo de preservação da memória imaterial do teatro do nosso país, que embora permeados por uma série de dificuldades para produzir espetáculos e manter vivos seus grupos continua reexistindo.

*O autor Paulo Flores é diretor teatral e ator. Fundador da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895