Um ATO de fé na arte

Um ATO de fé na arte

Renato Mendonça

"Espaço Arcabouço" com Gabriel Martins, é uma das atrações da mostra ATO2022 no dia 24 de outubro

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Na próxima quinta-feira, 20 de outubro, estreia em Porto Alegre a mostra de artes cênicas ATO2022. Até o dia 27 de outubro, o ATO2022 oferecerá atrações diárias, em cinco espaços da Capital, totalizando dez espetáculos com preços populares e duas oficinas abertas ao público. Na paleta de atrações, teatro adulto e infantil, circo contemporâneo, performances de rua, poesia falada, dança e breakdance. A programação prevê montagens da capital e do interior do RS, além de uma atração do Rio e outra de Santa Catarina. Os ingressos podem ser adquiridos no site institutoling.org.br. Escolas e entidades que queiram estabelecer parceria com o ATO2022 devem fazer contato com agendamentoato2022@gmail.com.

A explicação acima, no entanto, não descreve completamente o que é e será o ATO2022.
Como qualquer ato artístico, o ATO2022 carrega sentido, emana mensagem, sinaliza intenções. Mesmo o produto cultural que se satisfaz no entretenimento se posiciona politicamente. Não há arte que não se coloque frente à realidade, não há artista, técnico ou agente cultural que não seja protagonista de ação política. E, naturalmente, os espectadores, com sua simples presença ou ausência, demarcam seus níveis de adesão e satisfação quanto aos atos artísticos.

Nessa discussão cabe a palavra narrativas. Não as narrativas de guerra que servem de recheio aos discursos no entrevero das campanhas eleitorais. Mas assumindo a guerra do bem das narrativas, na medida em que cada indivíduo, segmento social ou político, cada território ou grupo conformado por suas características e necessidades, cria, propõe e tenta impor sua própria narrativa.
O ATO2022 reconhece esse quadro e não se furta a também oferecer sua narrativa.
Ato remete a movimento, que pode bem ser traduzido por um verbo. No nosso caso, o verbo REPARAR é uma boa escolha. O significado de reparar admite ao menos dois sentidos: consertar e prestar atenção. É isso que o ATO2022 propõe a seus espectadores: que experimentem fruição estética de excelência, aproveitem o prazer da arte presencial superado o isolamento exigido pela pandemia, mas que também sejam expostos a demandas de respeito, território e reconhecimento de dívidas sociais que desfilam a todo momento nas ruas, nos palanques, nas lojas, nos encontros familiares, nas escolas e, naturalmente, nos palcos.

O ATO2022 está atento também a um dos poderes maiores do fazer artístico, que remonta às pólis gregas – o de estabelecer coesão social por força da empatia. Na condição especial de desarmamento e de generosidade que se estabelece na relação palco/plateia, especialmente no caso das artes presenciais, reside uma terra de ninguém e de todos no palco da guerra de narrativas. 
A afirmação política do ATO2022 se coloca já desde quem o realiza. O evento se constitui em uma parceria inédita entre o Instituto Ling e a Secretaria de Estado da Cultura – por meio da Casa de Cultura Mario Quintana e do Instituto Estadual de Artes Cênicas (IEACEN) –, com apoio do Sesc/RS. O patrocínio é do Banrisul. Essa aliança, aproveitando termo recorrente em tempos de campanha eleitoral, materializa o espírito de reconhecimento do outro e de complementariedade que o ATO2022 defende. São entes públicos e privados, cada qual com ações consolidadas no campo cultural da cidade e do estado, que se tornaram companheiros de viagem no objetivo de estabelecer uma referência nas artes cênicas, um ato que pode ou não ter sequência, mas que indiscutivelmente comprova a eficiência das parcerias.

A curadoria partiu de orientações decididas coletivamente. A análise do momento atual revelou que o isolamento social valorizou expressões virtuais de entretenimento e de cultura, sendo evidente a desmobilização da categoria artística, pressionada pela interrupção ou pela diminuição drástica dos eventos presenciais. Por outro lado, reconheceu-se urgente recuperar o lugar de reflexão, prazer e provocação que são os palcos e outros espaços onde a arte presencial se faz. É mais importante que nunca que os espectadores reassumam seu lugar de diálogo com os artistas. E é tão importante como que a cultura recupere seu tônus e reconhecimento como setor fundamental de nossa economia (o ATO2022 mobilizará mais de 180 profissionais, entre artistas, técnicos, pessoal administrativo, catering, transporte...).

Os princípios da mostra surgiram claramente:
− consolidar a arte como ferramenta de descoberta, conscientização e tolerância;
− estimular a exploração de linguagens e de espaços;
− propor uma grade de espetáculos e performances sem esquecer de ações formativas;
− contemplar várias correntes estéticas, valorizando diferentes modos de produção;
− ensejar o intercâmbio entre artistas e público, entre artistas e artistas, entre público e público.
Nossas atrações são mundos a se descobrir e compartilhar. A grade completa prevê oito participações gaúchas, uma delas, Não Há Mar (dia 22), do Teatro Por Que Não? (Santa Maria), será apresentada pela primeira vez em Porto Alegre. As demais produções do Rio Grande do Sul são Fim do Silêncio, o Eco do Incômodo (20), com a performer Preta Mina; Restinga Crew 20 Anos – Periferia, Dança & Arte (21) do Restinga Crew; Amazônia – Um olhar sobre a floresta (23), com o Projeto GOMPA; Espaço Arcabouço (24), com Gabriel Martins; Nuances – Uma Ilha Azul Num Oceano Cor de Céu (26), da Cia Trupe Dosquatro (Bento Gonçalves); e a apresentação especial de encerramento que terá interação entre Cosmobloco e o Grupo Cerco (27).

De fora do Estado, o ATO2022 contará com Mulher Multidão (20), da poeta e performer carioca Maria Rezende, e Homens Pink (25), do grupo catarinense La Vaca Companhia de Artes Cênicas, ambos inéditos na Capital. O Instituto Ling receberá duas oficinas gratuitas, que serão transmitidas também por streaming, ministradas por Maria Rezende (21) e por Renato Turnes (26), do La Vaca. 
Uma mostra constituída de espetáculos e grupos de variados territórios, estágios de produção, linguagens e públicos. Uma mostra de amostras. Uma degustação para (re)despertar o gosto pela arte presencial.

Não por acaso, a abertura e o encerramento do festival consagram o reconhecimento do outro. Dia 20, no Teatro do SESC, Preta Mina e Maria Rezende exporão cada uma seus versos e estilos, mas se reunirão ao final, para uma performance especialmente criada para a ocasião. No encerramento do dia 27, às 19h, aberta ao público, a arte celebratória das ruas ocupa a Travessa dos Cataventos materializada nos corpos e na alegria do Cosmobloco e do Grupo Cerco. Caberá a eles soar trombetas – e saxofones, guitarra, baixo, bateria e outros instrumentos de percussão – para reivindicar um Brasil construído coletivamente com mais justiça e prazer. 

*  Jornalista e crítico. Curador da mostra de artes cênicas ATO2022. Integra o comitê de direção artística coletiva do 29º Porto Alegre Em Cena. É coordenador da Escola de Espectadores de Porto Alegre (EEPA). 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895