Um chá em Oxford

Um chá em Oxford

Alcides Mandelli Stumpf

Há poucos dias passei por Oxford, cidade universitária no interior da Inglaterra, perto de Londres, onde fiz um curso sobre Saúde, minha atividade principal...

publicidade

Há poucos dias passei por Oxford, cidade universitária no interior da Inglaterra, perto de Londres, onde fiz um curso sobre Saúde, minha atividade principal.

Acontecia a primavera. Final de maio e a temperatura era amena. Estava acompanhado de uma linda jovem, graciosa e amiga, e seu gentil e amoroso marido. 


De forma natural, porque o ambiente assim impelia, procurava por um livro especial, que tivesse o efeito de uma xícara de chá - quente, saboroso, aromático... capaz de despertar a minha identidade... que aquecesse meu corpo e meu espírito... uma espécie livro de conforto, como dizem os ingleses em referência a obras que lhes são ternas, agradam e podem ser compartilhadas em amizades íntimas - uma espécie de talismã.


O ambiente gótico em que estávamos imersos remeteu-me ao passado distante em que a leitura era um ato solene, feita em voz alta e em lugares públicos, muitas vezes nas mesmas praças, ruas ou salões que ora encontrávamos. A leitura, pois, em épocas pretéritas, anteriores à invenção da prensa era uma ação coletiva, uma espécie de ritual a ser seguido, ouvido e interpretado por diversas pessoas ao mesmo tempo e em comum união.


Bem diferente - desde Gutenberg e a consequente industrialização gráfica - os livros passaram a existir em larga profusão, em proporções menores e mais adequadas ao manuseio, sendo, inclusive, e com frequência, levados para cama, onde são cheirados, acariciados e, em situações de extremo afeto, até beijados furtivamente. Assim, a leitura que antes era litúrgica e sisuda, passou a ser um ato não menos sagrado, porém, mais privado, íntimo e saboroso.


A materialidade, o estímulo tátil e olfativo transmitidos pela textura do papel e cheiro da tinta, me afastam, agradavelmente, da poluição eletrônica e seus respectivos lixos cibernéticos que, invariavelmente, vêm no combo. Essa conjugação corporal e afetiva, sem dúvida, favorece a minha entrega e aprofundamento além do envolvimento emocional com os pensamentos e elementos concebidos pelos mais diferentes autores.


Por esses e outros motivos e, particularmente, por ser um tanto anacrônico e totalmente analógico, permaneço fiel aos textos escritos em papel: além de não exigirem conhecimentos tecnológicos ou manual do proprietário, são livres de Cookies, vírus digitais e demais tormentos, como fake news ou agressões comerciais, que ocorrem cada vez com maior frequência e intensidade no universo paralelo.


É lamentável e dolorido imaginar que essa onírica realidade – cultivada por mim desde a infância com fervor religioso – poderá tornar-se tristemente desconhecida à maioria das crianças ou gerações recentes, que nascem e crescem entre computadores, tablets, celulares, games e outras bugigangas eletrônicas impensáveis.


Ao mesmo tempo, não tenho dúvidas sobre o futuro da arte literária. Essa, apesar da inteligência artificial e outras agressões à racionalidade, continuará existindo e resistindo até a eternidade, impávida e colossal. Mas, igualmente, é certo que poucos saberão apreciá-la na sua dimensão mais profunda e melhor apresentação. Entendo que, de certa forma, os livros e romances estão para os e-books, Kindle e similares, assim como a dramaturgia, o teatro e a ópera estão para televisão, cinema ou grandes shows musicais da Broadway. São obras desiguais, diferentes na inspiração e no espírito, essencialmente menos românticas e dramáticas. Menos humanas, desprovidas de qualquer toque divino - acrescento com sentido e sincero pesar.


Voltando a Oxford e aos amigos de acima, em alegre e longa caminhada cruzamos vielas antigas, becos cor de mel e ruelas labirínticas que se abriam em lindos parques de gramados verdíssimos e parelhos, onde crianças e adultos festejavam o glorioso retorno do sol àquelas paragens, normalmente úmidas e sombrias. Era suave a tarde naquela doce sexta-feira.


Depois de passarmos a manhã exaustiva em sala de aula, no Trinitty College, andamos a esmo entre estudantes contentes, trajados com capas pretas quais travessos morceguinhos esvoaçantes em suas céleres bicicletas. 


Depois de visitarmos a Biblioteca Bodleiana e a Chist Church Cathedral, decidimos sair à procura da casa de Alice - ou o lugar onde nasceu “Alice in Wonderland”, de Lewis Carrol. Com efeito, ao final de uma jornada encantadora, encontramos a pequenina casa, atualmente transformada em loja de souvenirs. Externamente ainda é bastante aconchegante e resiste ao tempo, espremida entre uma livraria e outro prédio maior, igualmente antigo, em uma bela rua tipicamente vitoriana.


Alice no País das Maravilhas (1865) foi dedicado por Carrol à menina Alice Liddel, filha de um colega importante, igualmente membro da Universidade Christ Church. É uma obra que precisa e merece ser lida e apreciada por pequenos leitores, jovens crus ou até adultos mais passados como eu. Diria que se trata de um bom livro de conforto.


Conta a história de uma garota esperta que segue um velho coelho branco na descida de um buraco ao chão. No transcurso da trama tudo acontece. Ela encolhe de tamanho e entre peripécias, tribulações fantásticas e sofrimentos apavorantes volta a crescer.


Fica claro, na atraente narrativa, que é dolorido crescer e penoso o processo de tornar-se adulto. Aliás, a única vantagem do envelhecimento é a possibilidade de encontrar a paz consigo mesmo e com os outros – lamentavelmente perdida ou deixada de lado por alguns infelizes que vagam pelo mundo sem saber o porquê.


Há livros e situações na vida que não conseguimos decifrar totalmente, mas somos receptivos às suas mensagens de acordo com as diversas fases de maturação física e mental que passamos no decorrer da existência.


Assim acontece com “Alice no País das Maravilhas”, e assim foi o passeio por Oxford, na tarde primaveril, com o querido casal Ale e Nino.


Eu, com meus cabelos de coelho branco, e eles jovens e dispostos a crescer na vida. Em determinado momento, refeitos das intensas caminhadas e conversas sem fim, sentimos em harmonia espiritual uma pungente e constrangedora saudade do nosso infante e eternamente atordoado Brasil e lembramos a sábia e célebre frase do livro: “Para quem não sabe para onde quer ir, qualquer caminho serve...”


Por fim, desfrutando do tempo em uma lanchonete ao ar livre, juntos em momento de relaxamento e descanso, um garçom gentil e tipicamente inglês, perguntou se gostaríamos de uma xícara de chá. 
Em perfeita sintonia, felizes por aquele momento de epifania, respondemos a uma só voz: - Yes, we love tea!


Sim, nós também amamos a paz, o trabalho e a sabedoria.


* Médico, escritor e presidente da Associação dos Amigos da Biblioteca Pública do Estado do RS

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895