Um Cidadão de Porto Alegre

Um Cidadão de Porto Alegre

O escritor Alcy Cheuiche fala da sua relação de amor com a capital gaúcha que terá seu ponto alto no dia 4 de abril, com o título de Cidadão de Porto Alegre, concedido para a Câmara dos Vereadores

Alcy Cheuiche

Alcy Cheuiche recebe o título de Cidadão de Porto Alegre na Câmara dos Vereadores, no próximo dia 4 de abril

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A primeira imagem que tenho de Porto Alegre me vem dos oito anos de idade. Na aurora da minha vida, depois de uma longa viagem de carro desde Alegrete, entramos na barca para fazer a travessia do Guaíba. Lembro do meu pai, então major do Exército, explicando que ela fizera parte do Dia D, em que os aliados desembarcaram na Normandia para libertar a França. Como eu iria imaginar, que exatamente quinze anos depois, fazendo pós-graduação em Paris, alguns amigos me levariam àquele lugar coberto de cicatrizes históricas? 

Maktub é uma palavra árabe que significa, em tradução livre, a força do destino. Com 365 dias no calendário, a Câmara de Vereadores escolheu exatamente o 4 de abril para me ser entregue o título de Cidadão de Porto Alegre, a data de nascimento do meu pai. E, de todas as pessoas que conheci na minha vida, foi ele a que mais mereceu o título de cidadão brasileiro. O que provam estes versos que lhe dediquei na meninice e o título de General da Educação, que recebeu do povo alegretense:


Tenho sempre na memória
As palavras do meu pai:
Aos velhos sempre ajudai
E protegei as crianças,
Porque as águas correm mansas,
Pra quem tem bom coração,
E estende sua proteção
Aos animais e às plantas.

 

Citoyen e Citoyenne são palavras que nasceram na Revolução Francesa para identificar homens e mulheres libertos da monarquia absolutista. Seres humanos que lutaram e morreram para substituir o L’État c’est moi pela Democracia, ou seja, pelo poder do povo. E foi por esse poder, manifestado através do voto livre e democrático, que foram eleitos os vereadores e vereadoras de nossa capital. Por essa razão é totalmente legítimo o título que receberei, ainda mais, tendo sido outorgado por unanimidade.

Nasci em Pelotas, no sobrado dos meus avós maternos, Jenny e Alfredo da Silva Tavares, na rua 15 de Novembro, e tenho muito orgulho de ser filho de Zilah Maria Tavares Cheuiche e cidadão da querência de Simões Lopes Neto. Mas também sou conterrâneo de Mario Quintana, pois vivi em Alegrete dos cinco aos dezoito anos de idade. E porque seus vereadores, em 4 de abril de 2004, dia do centenário de nascimento do meu pai, Alcy Vargas Cheuiche, me concederam o título de Cidadão Alegretense.

Devido à minha atividade cultural, também tenho a honra de ser Cidadão de Caçapava do Sul, por obra e graça da Câmara de Vereadores da cidade que abrigou meu avô libanês, Julião Cheuiche, corrente sanguínea de que muito me orgulho, e onde ele se casou com Maria Cândida de Vargas, dando-me o direito de portar esse sobrenome ilustre. 
Mas não é só de mim que desejo falar, e sim da minha paixão por Porto Alegre, desde o dia em que atravessei o seio das águas, o que também contei em alguns versos:


Entre o Sena e o Guaíba
gestei a minha poesia.
Junto ao Sena fui boêmio,
Junto ao Guaíba, menino.
Entre os dois rios, tão distantes,
Vivi os sonhos errantes,
De uma alma em formação.
No Sena bebi cultura,
No Guaíba, inspiração.
Trago os dois rios no meu corpo,
sem misturar suas águas.
No Sena, lavou o rosto
nossa História Universal.
Guaíba é o sangue da terra,
dourado de pôr do sol. 


Aos dezoito anos, ainda meio perdido nesta cidade amada, passei no vestibular para a Escola de Agronomia e Veterinária da Ufrgs, tendo sido aluno do homem de maior cultura rio-grandense e universal que conheci na minha vida, o Professor Mozart Pereira Soares, que também, alguns anos depois, recebeu o título de Cidadão de Porto Alegre. Foi ele quem me disse, após ler o meu poema Reza Chucra, publicado no pasquim dos estudantes, as palavras que me abriram caminho para exercer duas profissões: Não há nenhuma incompatibilidade entre a Medicina Veterinária e a Literatura. Acreditando nelas, consegui ser o primeiro colocado na minha turma e ganhar uma bolsa para fazer mestrado na Universidade de Paris, onde mergulhei na cultura universal, e mandei regularmente crônicas para o Correio do Povo. Foi a Medicina Veterinária que me levou também para Hannover, na Alemanha, onde, além do aperfeiçoamento científico, escrevi minha primeira narrativa longa, “O Gato e a Revolução”.

Essa convivência harmônica com duas profissões fez com que eu fosse editor, por trinta e três anos, aqui em Porto Alegre, da revista científica A Hora Veterinária, em convênio com a França, período em que também escrevi e publiquei a maioria dos meus romances históricos e outros livros de contos e crônicas. Quando fui patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, em 2006, a maior honra literária para um escritor rio-grandense, declarei à imprensa o agradecimento do escritor ao veterinário pelas muitas contas que pagou, quando a literatura não me rendia materialmente.

Assim, se explica que eu tenha a honra de ser membro titular da Academia Rio-Grandense de Letras, uma das mais importantes do Brasil, com seus cento e vinte e dois anos de idade, da Academia Brasileira de Medicina Veterinária, com apenas quarenta membros representando os muitos milhares de profissionais do país, e da Academia Líbano-Brasileira de Letras, Artes e Ciências.
Em Porto Alegre escrevi a maioria dos meus livros e todos foram editados aqui, com exceção daqueles publicados no exterior. A exemplo de Erico Verissimo, Mario Quintana e outros escritores gaúchos, mantive e manterei sempre essa fidelidade, porque, dentro do meu coração, desde que vi esta cidade brilhando ao sol do outro lado do Guaíba, apaixonei-me por ela e cada vez me apaixono mais.

Aqui consegui sempre manter o que aprendi com meus maiores mestres, dentro e fora de casa, a convivência de duas culturas: a nativista e a universal. Assim, sem nunca perder de vista a cosmovisão, também valorizei o tradicionalismo gaúcho, traduzido principalmente, em Porto Alegre, pela cidade cenográfica montada todos os anos no Parque da Harmonia. E isso me levou a ser eleito, em 2011, Patrono dos Festejos Farroupilhas, uma das maiores honras do meu currículo. O que me permitiu desfilar a cavalo pelas ruas de Porto Alegre, portando a Chama Crioula da Revolução Farroupilha.

Além do pôr do sol do Guaíba, símbolo de Porto Alegre, sou enamorado do Theatro São Pedro, da Biblioteca Pública, da Praça da Matriz com todo seu entorno, da Rua da Praia, do prédio do Correio do Povo, da Igreja das Dores, da Praça da Alfândega, de todos os nossos museus, em especial o MARGS, do Mercadão, do Parque da Redenção (nome dado quando os vereadores de Porto Alegre libertaram os escravos da cidade quatro anos antes da Lei Áurea), da Reitoria da UFRGS, do Parque Moinhos de Vento, o Parcão (pátio dos fundos do prédio onde moro), da Ponte dos Açorianos, dos nossos estádios de futebol, do Clube dos Jangadeiros, o que me faz retornar ao Guaíba, paixão da aurora da minha vida.

Agradeço esta homenagem, em especial ao vereador Pedro Ruas, seu proponente, por quem tenho profunda admiração, ao presidente Hamilton Sossmeier e às vereadoras e vereadores desta Casa, em nome de todos meus familiares, da minha mulher amada, dos meus alunos e alunas em vinte e um anos de dedicação às Oficinas de Criação Literária, aos meus mais fiéis leitores e leitoras, e de todas as demais pessoas que estão felizes junto comigo.

Longa vida à mui leal e valorosa cidade de Porto Alegre! 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895