Um livro que conta as dores do mundo

Um livro que conta as dores do mundo

Neusa Galli Fróes *

Escritoras nas aldeias da região de Karamoja, em Uganda, no continente africano, com Fernanda Baumhardt, autora de "Vozes à Flor da Pele"

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A jornalista Fernanda Baumhardt desembarca em Porto Alegre para lançar, neste sábado (23), o seu primeiro livro “Vozes à flor da pele – Uma humanitária brasileira em busca de propósito” (Ed. Lacre). A obra , que terá sessão de autógrafo na Livraria Santos, na Galeria Prado, às 16h, revela os bastidores do mundo humanitário, um setor, em geral, romantizado no imaginário das pessoas e expõe, sem filtro e com coragem, seus dilemas e as difíceis escolhas pessoais que teve que fazer pelo caminho.

Por meio de técnicas de vídeo participativo, a autora corre riscos e quebra regras para encorajar pessoas de comunidades devastadas por desastres e conflitos a segurar o microfone, soltar a voz e sugerir soluções humanitárias que possam gerar mais impacto em suas vidas. Entrelaçadas à voz e questionamentos da própria autora, sobressaem-se as vozes de 11 mulheres – a maioria migrantes e refugiadas - que pela primeira vez seguraram uma câmera para filmar os seus próprios relatos. “O mais bonito nesse processo é que estas vozes, ao mesmo tempo, se misturaram e se encontraram à minha. E a cada escuta, suas narrativas retroalimentaram a Fernanda que virava então uma outra Fernanda, em um baile circular de vozes de vida” revela a autora.

A gaúcha narra em primeira pessoa e sem filtro, o seu processo de reflexão que a levou pedir demissão da empresa de mídia americana CNN, a sua busca por uma nova carreira almejando fazer a diferença no mundo, sua entrada no setor humanitário internacional e a sua experiência em mais de 30 países atuando como especialista em Comunicação com Comunidades Afetadas por Desastres. Ela colaborou com diferentes organizações como o Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, diversos organismos das Nações Unidas (ONU) e Conselho Norueguês para Refugiados (NRC).

Uma bagagem robusta

Na bagagem dessa robusta experiência, um acervo de mais de 8 mil fotografias e cerca de 300 horas de filmagens e depoimentos. Todo o trabalho foi registrado e mostra a amplificação de vozes, especialmente as mulheres. “Elas soltaram a voz e me ensinaram muito”, diz Fernanda, o que inspirou o título do livro que chega agora, em Porto Alegre, depois do lançamento feito no Rio no Dia Mundial Humanitário (19 de agosto).


Fernanda relembra como tudo começou: saiu de Porto Alegre depois de se formar em Jornalismo em 1995, embarcou rumo à São Paulo para seu primeiro estágio em uma pequena produtora de vídeo. Três anos depois, quando tinha apenas 30 anos, passou em um processo de seleção para ajudar a lançar comercialmente no Brasil o site da CNN em português. “Tudo ia bem na minha rotina na capital paulista até me enviarem à Londres para cobrir uma licença de saúde. Mesmo duvidando da minha capacidade, fui por três meses atuar no mercado britânico-europeu. Fiz apresentações e reuniões em Paris e trabalhava no mesmo prédio que a Christiane Amanpour, referência no jornalismo mundial”, diz a gaúcha. 


Pouco tempo depois, no início de 2006 o canal de TV abriu 12 posições para integrar a sua nova divisão digital, montando equipes em três cidades, Chicago, Nova Iorque e Los Angeles. “Eram muitos candidatos disputando as vagas, todos americanos com experiência no mercado local. Mas eu, guria de Porto Alegre, que desde os 7 anos gostava de tocar gado a cavalo com os peões da fazenda, e ainda tomava chimarrão, achei que devia me meter. Fui passando nas entrevistas até receber oficialmente uma proposta para ir para a Califórnia. Circulava entre Los Angeles e Nova Iorque e era a única brasileira parte da equipe presente na primeira convenção da história da CNN Digital na torre da Time Warner no Columbus Circle”. 


Em 2007, Fernanda abandonou sua carreira na empresa de mídia americana para começar do zero em busca de uma profissão que de alguma forma contribuísse para amenizar os problemas do mundo. Ganhou uma bolsa na Universidade Livre de Amsterdam para cursar mestrado em Gestão Ambiental e logo foi para Malaui, África fazer a sua pesquisa de campo com a Cruz Vermelha. “Eu me perguntava quão realmente séria é a situação que a humanidade e o planeta estão enfrentando. Acabei respondendo esta pergunta devagarinho em campo, durante cada uma das missões e projetos humanitários que participei tentando fazer a minha nano-parte”. Durante esta jornada de executiva à humanitária, Fernanda revela que teve que vencer inúmeras barreiras, incluindo, um câncer, um divórcio, a contrariedade da família com os riscos que corria, o fato de ser mulher latino-americana e muitas vezes não ser levada à sério, além da falta de cultura do setor humanitário de não priorizar a escuta e diálogo comunitário.

A gaúcha virou referência internacional, dá aulas e treinamentos, incluindo cinco anos consecutivos como palestrante convidada no mestrado de Ação Humanitária da Universidade de Genebra. Também é considerada uma das 25 maiores especialistas em vídeo participativo do mundo tendo treinado diretamente centenas de comunidades afetadas por desastres. Fala quatro idiomas e considera-se uma cidadã de um mundo sem fronteiras. Em 2009, recebeu em Nova York o prêmio “Imagens e Vozes de Esperança”, que reconhece profissionais de comunicação que atuam no mundo como agentes de mudança.

Parcerias pesos-pesados

O livro, de 244 páginas, da Editora Lacre, vem com texto de apresentação de Rogério Mobilia, vice-diretor regional do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários para a América Latina e Caribe (UN OCHA). Traz fotos de mulheres com o microfone nas mãos e de Fernanda em campo. O prefácio vem assinado pela jornalista gaúcha Maria Paula Carvalho, baseada na Rádio France Internacionale, em Paris. Na curadoria, condução de entrevistas e edição, a autora contou com a colaboração da jornalista e ex-editora da revista Marie Claire, Rosane Queiroz. “Minha voz falada serviu como base para a minha escrita resultando em um tom bastante intimista” revela a gaúcha. 

Atualmente, depois de muito andar, ver e ouvir, a jornalista parece aprofundar suas reflexões: “Transitar entre tantos mundos, ver pessoas em sofrimento, e depois voltar para uma espécie de oásis não é fácil. A gente vai deixando pedaços, vai se misturando por onde passa. Uma eterna reflexão: somos humanos? A verdade é que continuei mesmo sem esperança. E talvez isso seja o mais duro de tudo. E por isto que resolvi parar para escrever, ressignificar e quem sabe me curar das dores do mundo.”

* Jornalista da NGF Imprensa e Assessoria

 


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895