Um mapa da fé na arte

Um mapa da fé na arte

Nora Prado *

Mirna Spritzer e Sérgio Lulkin são Luba e Vrum no espetáculo que celebra os 45 anos de encontros cênicos da dupla

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Ainda sob o impacto da peça “Terra sem Mapa”, sigo saboreando a feliz experiência no Teatro do Centro Histórico Cultural Santa Casa onde o público lotou a sala, prenhe de calor humano e expectativa, depois de uma temporada de sucesso na Zona Cultural de Porto Alegre. Lá dentro, na sala de teatro, um burburinho típico de estreia com as pessoas se reencontrando e conversando animadas. 

Os personagens – Luba e Vrum - entram pela plateia, tão curiosos quanto nós. Apreciam o espaço, cumprimentam os espectadores, tecem comentários discretos, como se eles mesmos reencontrassem velhos conhecidos. Logo o silêncio toma conta e a atenção se dirige para os artistas, que avançam entre o público, até subir no palco e ficando na boca de cena. Começam a falar com o público e Luba nos conta sobre a origem dos três sinais, antes do início do espetáculo, relembrando a época de Moliére na França. Os três sinais organizam o público em seus lugares e resgatam a convenção que o artista francês criou: o espetáculo vai começar! Vrum tece considerações bem-humoradas sobre ditados populares e logo se estabelece uma comunicação estreita com os espectadores. Eles respiram juntos e, magicamente, a cortina se abre dando início à viagem propriamente dita.

Os dois personagens vão passeando pela memória, relembrando histórias contadas pelo pai e a mãe quando tiveram que deixar o seu país, cidade, bairro, casa e toda a vida para trás. Não por acaso, ambos têm o sotaque típico dos judeus imigrantes do Bom Fim, bairro da cidade onde a maioria da comunidade se estabeleceu quando chegaram em Porto Alegre. O fluxo da memória alterna cenas dramáticas e cômicas revelando um cotidiano provinciano em uma nova terra onde a língua é o principal distintivo para revelar quem é local ou estrangeiro. Como exilados, Luba e Vrum carregam a sina do despertencimento vivido por todo imigrante. A angústia da inadequação, a aprendizagem dos novos códigos, da nova língua, o desafio da eterna adaptação. Da tentativa e erro diante do novo cenário geográfico, histórico, social e cultural. Como preservar a essência comum dos seus pares? É pela transmissão oral e escrita que se mantém qualquer tradição, no caso, as tradições judaicas.

Desde as receitas de uma sopa específica, às cartas trocadas entre amigas e familiares, relatos, segredos, causos e uma série de narrativas na qual a identidade de um povo se constrói e passa adiante o seu legado de valores. Dessa colcha de retalhos surge diante de nós a primeira viagem de navio e os medos e anseios diante de uma nova terra. Saudade, impotência, desejo, sonhos e expectativas sobre o futuro. Luba e Vrum se alternam entre narradores e atores dessa aventura. A cidade vai se construindo e tomando forma através de um bairro tão familiar e, aos poucos, descrito e desenhado no espaço por eles. Cada um desses lugares adquire materialidade. Desde a história do urso na floresta, da menina sob a chuva, até a loja de colchões. E chegamos no motivo principal para o exílio em massa: a intolerância e a guerra. Mas o absurdo da Segunda Guerra Mundial não é menor do que as atrocidades das guerras atuais. Num determinado momento, Vrum fala diretamente para o público: - Uma guerra de mentiras, todo mundo mente, ninguém entende nada. Vocês entendem? Ao que o público responde, silenciosamente: não. Decididamente não há como entender e, muito menos, aceitar a guerra. E vai passando a pandemia, a perda dos entes queridos, a passagem implacável do tempo e as camadas de passado, presente e futuro se justapõem nesse mosaico carregado de sentido, porque humano e vulnerável. 

É preciso cantar e dançar, suspirar, lembrar para não esquecer, resistir e se reencontrar nas pequenas delicadezas, na poesia contida no acender das lâmpadas de gás e no céu estrelado. Nas canções de ninar, no amparo carinhoso de um no outro. Ao longo de uma hora, somos transportados para um espaço simbólico comum onde nos conectamos com a essência humana através da essência teatral, artesanal, carregada de poesia em estado real. Me lembrei da sutileza dos trabalhos do Grupo Tear, do qual tive o privilégio de fazer parte ao lado do Sergio Lulkin, e com a direção da Maria Helena Lopes. Me lembrei de certas peças da Irene Brietzke e do Teatro Vivo, da qual Mirna Spritzer fez parte, com todo aquele bom humor. 

Mirna e Sérgio apresentam uma sintonia fina adquirida em anos de trabalho sob os valores da honestidade e fé cênica, não sem muito trabalho e dedicação continuada. Isso significa que eles perseguem a verdade através de muito ensaio e troca generosa para alcançar esse nível de interpretação. Ambos respiram em cena e isso faz toda a diferença. Não há atropelos nem cartas na manga para surtir efeitos pueris. Ambos alcançam o estado meditativo de estar presente no aqui e agora do palco. A ação nunca é antecipada ou retardada. Isso faz com que fiquemos plenamente entregues e absorvidos pela narrativa corporal e gestual, pontuada de tempo interior e silêncios preenchidos com pensamentos e sentimentos, próprios dos seres humanos, que eles tão bem corporificam em cena. 

RESGATE

Há uma espécie de resgate das narrativas familiares, puramente emocionais, nas quais a gente enxerga os personagens, as situações e o conflito narrados, com propriedade, pelo pai, mãe ou avós. Isso é realmente encantador porque toca no mais profundo de cada um e desperta a criança interior que acredita naquilo que é mostrado com tranquila convicção. Esse domínio do ator-personagem acontece com tamanha naturalidade que acreditamos estar, verdadeiramente, diante de Luba e Vrum os quais se colocam de corpo e alma diante de nós. Eu, que convivi com Sérgio ao longo de tantos ensaios e apresentações diversas, me deleitei com os seus silêncios e pausas povoados de dúvida, ternura, saudade ou interrogação. Aquilo que Stanislavski descreveu como “fluxo contínuo da ação” acontece em pleno alinhamento de composição física, gestual e vocal ao longo de todo o espetáculo. Uma verdadeira aula de teatro através de uma interpretação segura e precisa, que passa pelos nossos sentidos ensinando o que significa “ter a plateia na mão”, pois respiramos e nos emocionamos junto com eles. O resultado dessa entrega é que experienciamos um teatro muito refinado do qual saímos com o coração transbordando de felicidade. 

Sergio-Vrum e Mirna-Luba resgatam o teatro feito de um texto pleno de sensibilidade numa encenação repleta de lirismo. Os efeitos da iluminação e da fumaça apenas reforçam o rigor do minimalismo cênico que privilegia a imaginação do espectador. Saí da sala flutuando de esperança e com um sentimento de gratidão compartilhada com o público. Ainda pudemos abraçar os atores e trocar essas impressões ao vivo com eles. Num tempo de excesso de barulho e poluição visual, de banalidades e lixo cultural, trabalhos como este reforçam a fé na arte e no poder da comunicação tecida de sofisticada simplicidade. Meus parabéns a toda equipe e vida longa à “Terra Sem Mapa!” 

Porto Alegre, julho de 2023.

*Atriz e produtora. Bacharel em Artes Cênicas pela Ufrgs.


Correio do Povo
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