Um País aos Tropeços

Um País aos Tropeços

Romance-disco "Tropeçália", de Jéferson Assumção, vê o tropicalismo a partir da periferia de Porto Alegre

Igor Ximenes Graciano *

Romance-disco "Tropeçália" (Editora Taverna), do escritor e filósofo Jéferson Assumção, vê o tropicalismo a partir da periferia de Porto Alegre

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Não é de hoje que questões de identidade, lugar e diferença ocupam o debate público e orientam a discussão política em geral. Menos prestigiada, a demanda nacionalista volta sobretudo pelo viés conservador ou francamente fascista, como afirmação de uma unidade sem nuances ou diferenças a partir dos “símbolos nacionais”. A cultura transita por aí, nessas representações e contradições, e o romance “Tropeçália”, de Jéferson Assumção, não é indiferente a essa conjuntura, antes busca responder a ela a partir dos recursos que a literatura dispõe.

O que seria, afinal, “Tropeçália”? O neologismo do título reverbera um questionamento que atravessa o texto de Assumção sem que se queira desvendá-lo como hipótese de pesquisa ou ensaio sobre a cultura. Se a especulação ensaística às vezes aparece pela voz dos personagens, a obra não segue esse caminho, pois o autor recorre à plasticidade da prosa romanesca para explorar os tropeços dos indivíduos em paisagens sociais habilmente apresentadas. A história de uma banda em formação, que se faz a partir da região metropolitana de Porto Alegre e chega aos bairros descolados da capital gaúcha (o Bom Fim, sobretudo), é uma aventura do deslocamento: da periferia ao centro, do rock ao groove, da branquitude à negritude. 

Esses deslocamentos semânticos são também narrativos, como se observa no artesanato bem engendrado do romance, que mostra a ascensão de jovens músicos em frestas distintas de uma temporalidade disruptiva. A não linearidade é uma estratégia crucial, pois dá conta da complexidade do êxodo rural e simbólico vivenciado pela família de George e seu irmão, do estabelecimento em Canoas como camelôs até as novas perspectivas que se abrem em Porto Alegre. Em “Tropeçália” descortina-se a ancestralidade torta desses jovens: “No início dos anos 70, o Negra, a Carmina e os dois irmãos eram iguais às milhões de pessoas mudas nascidas no campo e que depois foram arrastadas pra cidade, tímidas como mulas levadas pelo laço George era filho de um desses, ele e John eram filhos do Negra” (p. 50).

No romance de Jéferson Assumção, tal condição periférica se coloca de forma inequívoca, pois é apresentada a partir de pequenas e, ao que parece, insuperáveis inadequações dos protagonistas em seu empenho “de ser aquilo que se é”. Aos olhos dos outros, George “chama a atenção”, em parte porque não é como eles, em parte porque aceita a máscara apropriada em um universo de projeção e abismo, a imaginação criadora e o real que se impõe. Apesar da ascensão, o talentoso guitarrista “é um suburbano e nunca deixará de ser um suburbano” (p. 183).

É possível ler “Tropeçália” como romance de formação de uma geração que assume o fracasso sem o consolo de que a caminhada poderia e ainda pode ser diferente. Não há erro e tampouco traição (ainda que esta seja um dos temas da obra). A derrocada em alguma medida expressa o fatalismo da hybris grega, o orgulho indomável que leva aos grandes feitos e à queda do herói. Se o sonho juvenil desmorona e a alternativa redentora nunca esteve no horizonte, é preciso seguir, em paisagens nada exemplares, para a possibilidade do recomeço. O eterno retorno.

Além disso, o livro “Tropeçália” é mais que um romance, trata-se de um produto multimídia. Um QR Code nas páginas iniciais da publicação permite o acesso ao álbum da banda Tropeçália, com composições e interpretação do autor Jéferson Assumção. Há, portanto, uma banda “de verdade”. Canções descritas na narrativa são apresentadas no disco, e logo percebemos que o autor está conectado com o universo da obra de modo mais visceral do que se poderia supor, afinal a dimensão sonora do livro é atravessada pelo ruído biográfico, essa marca contemporânea da escrita romanesca que relativiza a separação entre autor e narrador. 

Contudo, Assumção privilegia a ficção, e as pistas autobiográficas cifradas e nunca pronunciadas na primeira pessoa servem mais como elemento do jogo narrativo do que como fetiche voyeurístico, tão comum em certa produção das últimas décadas. Ao leitor cabe questionar se as canções se relacionam com a ficção como representação ou como comentário ao debate instaurado pela obra. A dimensão musical de “Tropeçália” é parte de uma textualidade que se expande além do livro (e além da escrita), sem deixar de reconhecer que o livro é sua principal morada. O autor é um escritor-músico, um escritor que canta desde o livro, para o livro.

O romance de Jéferson Assumção é a investigação literária de um lugar, seu lugar, e de uma condição. A certa altura da narrativa, George e Jey Jey, o antigo produtor da banda, conversam sobre o nome “Tropeçália”, quando divagam sobre as tentativas de tradução do tropicalismo no Rio Grande do Sul. Para Jey Jey, as tentativas anteriores, como o nome “gauchália”, por exemplo, soam ruins, inadequadas. A Tropicália não cabe no clima subtropical da capital gaúcha. O compositor Júpiter Maçã, que havia morrido há pouco e é mencionado nessa conversa, em uma de suas últimas e melhores canções, “A Marchinha Psicótica do Dr. Soup”, propõe, entre a ironia e a homenagem, usar o timbre de Caetano. 

Em suma, Caetano, o Veloso, que ostentou aos quatro ventos a “verdade tropical”, demarca em suas bordas o território deflagrado da “Tropeçália”, onde se afirma essa brasilidade sem cabimento. Uma beleza pura fora de sua verdade.

Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor de Teoria da Literatura na Universidade da Integração Internacional da Lusofoni Afro-brasileira (Unilab). 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895