Uma ode gigante ao gentil Tremendão

Uma ode gigante ao gentil Tremendão

Músico Rafael Malenotti, vocalista e fundador do Acústicos & Valvulados, escreve artigo sobre os encontros com Erasmo Carlos e a perda do gigante do rock nacional

Rafael Malenotti *

Rafael Malenotti e a esposa Leticia Dutra Maraninchi junto com o ídolo e inspirador Erasmo Carlos

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O ano era 2009, estávamos em dezembro, na reta final de mais uma temporada de doze meses de vida, como estamos exatamente agora. Mas não tinha tido Copa, não tinha tido eleições, e mal e mal existiam os smartphones, como agora, em 2022. A princípio não tinha mais nada de interessante para acontecer, até a hora em que meu telefone tocou e do outro lado da linha vinha o convite de uma emissora de TV para que eu fizesse uma entrevista com Erasmo Carlos sobre o lançamento de seu recém lançado livro, "Minha Fama de Mau".

Foi o que bastou para eu desabar chorando copiosamente, num turbilhão de emoções e pensamentos sem fim, porque eu não conseguia acreditar que essa oportunidade estava caindo no meu colo. Com tantos jornalistas capacitados para cumprir essa pauta, alguém da editoria do programa teve a ideia de que o ideal seria um fã/músico cumprir essa tarefa.

Fiquei em êxtase total durante os dias que antecederam esse que seria o primeiro dos três encontros que eu tive com o Tremendão. Quando ele apareceu no estúdio, eu simplesmente não consegui parar de chorar diante de sua enigmática presença, algo realmente muito difícil de explicar em palavras. E a choradeira foi tão intensa que, para amenizar essa situação e começar a entrevista, ele prontamente me apelidou de Cebola, brincando que o motivo de tantas lágrimas era porque eu estava com o tal vegetal no bolso, mexendo nele e passando os dedos nos olhos.

Depois de todos rirem muito da “tremenda” piada, ele mesmo fez questão de interromper a chacota feita e sentenciar que estava brincando e que entendia muito bem esse sentimento como um alto grau de sensibilidade e ainda finalizou dizendo que esse sentimento é para poucos. Nesse momento eu já tive o prazer de ter recebido a primeira gentileza vindo daquele que faz jus ao apelido que lhe foi dado durante a sua vida: GIGANTE GENTIL!!!

E foi exatamente assim durante toda a entrevista, de quase uma hora de duração, onde as lições que aprendi com ele, fiz, faço e farei questão de mantê-las por toda a minha vida.

Resumindo, ele me contou sobre todo o início da história do rock brasileiro, onde ele foi um dos maiores responsáveis por traduzir todas as referências musicais estrangeiras para a nossa língua, fazendo versões das canções que já estavam ficando consagradas no mundo, como "Splish Splash", "The Wanderer", que virou "Lobo Mau", e "Road Hog", que se transformou em "O Calhambeque", entre outras tantas. Nessa época inicial também já começou a embalar a parceria com o cara que viria a ser o Rei da Jovem Guarda, o seu grande amigo Roberto Carlos, que certamente manterá esse título real por toda a eternidade, no que depender de nós, fãs e admiradores dessa relação de mais de 60 anos, que nos presenteou com centenas de músicas belíssimas, e que hoje em dia servem de inspiração para o meu espetáculo A Tremenda Noite do Rei, onde homenageio a trajetória deles, executando, com o maior prazer, as músicas que ouço desde criança.

Aliás, uma das apresentações desse show que faço, com uma big band, foi realizado em dezembro de 2011, no Theatro São Pedro, para que eu pudesse pedir a mão da minha atual esposa, Letícia, em casamento, ao final de Cama e Mesa, porque afinal de contas, “todo o homem que sabe o que quer, sabe dar e querer da mulher” , e eu quis fazer essa surpresa à ela, à banda e ao público, que jamais imaginaram que a performance dessa noite tinha esse intuito. E o mais impressionante é que durante a tarde desse dia mágico, fui convidado a fazer um programa de TV, cantando e tocando junto com… Erasmo Carlos !!! Sim, essa foi a segunda vez que pude encontrá-lo, mas dessa vez foi tudo muito rápido e, em função do show que eu iria fazer mais tarde, acabamos não conversando tanto o quanto eu gostaria. Mas certamente já serviu como uma bênção à minha relação de amor com a futura esposa.


Meu último encontro com o Tremendão se deu em novembro de 2021, durante a tarde, enquanto ele passava o som no Auditório Araújo Vianna, para o seu espetáculo “O Futuro Pertence À Jovem Guarda”, que recebeu o Grammy de Melhor Álbum de Rock em Língua Portuguesa, apenas cinco dias antes de sua morte.

Felizmente o carro que levaria ele de volta ao hotel não estava no estacionamento e eu pude ficar esse tempinho conversando e mostrando o cartaz do show que eu faria em dezembro, justamente para celebrar o ano em que ele e Roberto Carlos completarem 80 anos de vida.

Ele aproveitou pra me felicitar pela minha atitude e recomendar também que eu aproveitasse todo o possível em relação à vida e à saúde, porque ele já se encontrava numa situação de muito sacrifício pra fazer as suas tarefas. Falou que estava muito bem “de cabeça”, 100% lúcido, porém o corpo não respondia mais aos comandos cerebrais e isso o deixava cada vez mais angustiado. Mas estava lá, durante a tarde, passando o som, e fez um lindo espetáculo na noite, mesmo que tenha sido na base da angústia e do sacrifício. O público nem percebeu. Fez uma linda dedicatória no pôster do meu show, onde sentenciou que o “Cebola” aqui também vai fazer oitentinha.

E é justamente isso que eu quero que os Deuses do Rock me proporcionem, os mesmos que o convocaram para se juntar aos grandes monstros sagrados que já nos deixaram, justamente no Dia do Músico, 22 de novembro passado. 

MUITO OBRIGADO, TREMENDÃO ERASMO CARLOS, NOSSO ETERNO GIGANTE GENTIL !!!

Quero seguir em frente, ajudando a perpetuar, cada vez mais, o teu legado, e cumprindo à risca todos os ensinamentos que pude receber em tão pouco tempo em que tive o privilégio e a honra de estar na tua presença. Lições que jamais esquecerei, como as de sempre ter muita positividade e de fazer tudo com muito amor.
Na verdade o que eu penso é que todos nós precisamos nos ater à apenas quatro palavras que deixastes em uma das tuas canções mais emblemáticas: É PRECISO SABER VIVER !!!

* Músico. Vocalista e fundador do Acústicos & Valvulados.  


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895