Uma pensadora entre nós

Uma pensadora entre nós

O crítico e professor João Vieira da Cunha exalta em resenha para o CS o livro “Quantos Dias Cabem na Noite”, da escritora gaúcha Marli Silveira

Correio do Povo

Ampulheta é um instrumento que enverga a capa do livro "Quantos Dias Cabem numa Noite", de Marli Silveira

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Encontramos na Literatura, não raro na história do pensamento, diversos casos de escritores e escritoras que se afirmaram por dentro da topologia epistemológica, ou do trânsito entre regiões cujos estatutos teórico-conceituais se alastram por campos distintos. Sartre, Beauvoir e Camus, para ficar em três representantes da escola existencialista e ou absurdista (caso de Camus), podemos enfrentá-los como filósofos escritores ou como escritores filósofos. Literaturas concernidas pela vastidão de um modo de pensar marcado pelas guerras, fascismo, crise da razão instrumental, maio de 68, para ficar em alguns aspectos da atmosfera do período. Tenho a impressão que Nietzsche não se sentiria constrangido em deitar no divã dos profundos e persuasivos personagens que circunscrevem a ritualística dostoievskiana. Kafka, Pessoa, Borges, Clarice, Szymborska, Wim Wenders, entre tantos outros nomes que poderiam muito bem repercutir a intersecção entre campos epistemológicos e gêneros/linguagens artísticas, nos deparamos com a poesia de Marli Silveira.

Marli Silveira, imortalizada com a entrada na Academia Rio-grandense de Letras, tem ocupado boa parte, talvez a melhor parte, das minhas leituras poético-filosóficas, e quero fazer um breve percorrido na obra “Quantos dias cabem na noite” (Bestiário, 2021), aliás, obra que já é anunciada pelo Armindo Trevisan como de uma poeta-pensadora. Diz a poeta: “Há uma infância apertada no meu peito/esquecida de entardecer”, “Há dias em que a vida nos atropela/estranha mania de dar a ela a largura do entardecer” ou ainda, “Nascemos entardecidos” e “Há momentos em que o tempo se apresenta pelo seu nome próprio/ e a história do transcurso parece ceder ao espetáculo do que se mostra/como uma nudez do instante ”. Nesses poemas aforísticos (classificação da própria autora), percebe-se a dimensão do tempo oportuno, kairós, como horizonte que mobiliza uma escrita que desliza na constante constatação do tempo que produz esquecimento. A poeta é atravessada pela presença do perspectivismo (Nietzsche), pela história dos processos de subjetivação (Foucault) e pelo empobrecimento da experiência desprendido da instrumentalização do olhar e da métrica neoliberal, mas insinua saídas pelos modos de experimentação do tempo e da espacialização poética, circunscrevendo caminhos em que o devaneio e o lastro de outros modos de acesso à experiência do mundo não seja capaz de constranger o porvir.

Os emblemáticos aforismos “A vida é uma teimosa tentativa acordada todas as manhãs” e “Amanheci com uma sensação atravessada na garganta/parecendo véspera do dia de tudo” produzem uma sensação de dor n’alma, mas de uma comovente dor que se avizinha do sentimento de mundo, que traz tanto a certeza da socialidade, quanto a condenação humana à finitude e ao refazer processos que engendram raríssimas dobraduras sobre os eventos que podem ser criados, inventados. A carga conceitual e o espectro de pensamentos inclusos nos aforismos são da ordem do insondável, acima de tudo, porque inscrevem a poeta Marli Silveira também como pensadora, que produz suas próprias e instigantes interpretações, lança suas ideias e nos auxilia a ver com vagar os desdobramentos epocais e vivenciais em que estamos recolhidos: “Nada em mim se dá por inteiro/me arrasto de um canto para o outro/ e insisto na ideia de que sou/no instante que me aconteço/Cobiço a sorte do tempo/que ao vestir-se de véspera/aprisiona a ingênua espera/na fria manhã que desacontece” e “Desperto do tempo do tempo despertado de mim/ como uma boca aberta e louca/que grita no canto da noite/e desesperada aponta para a saída/procurando o gesto inicial/Quantas vezes me repeti”.

Tomado pela sensação provocada pelos versos de Marli Silveira, “Se ouço meus amigos/os ouço muito bem,/meus ouvidos e minha pele crescem/sou toda alma tateando nos encontros/Se vejo meus amigos/e os vejo muito bem/ meus olhos crescem/ sou agora da altura de mim” , me senti no Café Martinho da Arcada, com Fernando Pessoa, enquanto abrasava mais alguns versos na sua multifacetada vida. A comparação é toda minha, o vigor poético da poeta dispensa alusões a outros nomes, embora gigantes como Pessoa. É que há algo no dizer de Marli Silveira que nos arrebata e nos lança de volta ao mundo, reclamando sentidos para continuidades nem sempre tão claras e dadas aos reles mortais: “Há um sem-fim no encalço dos meus dias/ como uma folha caída a fugir do vento/ breve levante das tardes frias/ ruído que se insinua em meu pensamento ”.

Acredito que “Há metafísica bastante em não pensar em nada” (Pessoa) e há, desde a manhã taciturna dos dias nublados, motivos poéticos para continuar minhas rotinas de leitor que, apesar da idade, ainda se surpreende e é tocado pela escrita que recompõe os ritmos para pausar o irrefreável. “Viver é existir,/ à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo/à parte o resto, haveres, tenho”.

Ernst Fischer resumiu bem o que penso sobre a arte, que “A função da arte não é a de passar pelas portas abertas, mas abrir as portas fechadas”. No caso específico da poeta e pensadora Marli Silveira, sua poesia e incursão filosófica repercutem como escadas que ajudam a ver o mundo, a vida, o ser humano, pelo testemunho de uma existência comprometida com a poesia colocada em obra em tudo o que escreve e toca. “Viver já é morrer um pouco a cada dia/mas há dias/bem sabemos/que morrem anos”. Escada (modo) que pode ser jogada fora, mas depois que subimos, percorremos seus degraus e nos utilizamos do seu modo de acesso, não temos mais como ignorar: o mirante é assombrosamente humano, belo e genial.


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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895