Uma sinfonia para os olhos

Uma sinfonia para os olhos

Curador da mostra de Miguel Rio Branco na Fundação Iberê e coordenador da área de Fotografia Contemporânea do IMS escreve sobre a exposição que abre neste sábado

Thyago Nogueira *

Fotografia da série "Maldicidade", integrante da mostra de Miguel Rio Branco, que abre neste sábado na Fundação Iberê

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No contexto de um jornal, a fotografia é usada de maneira objetiva para assessorar a notícia e transmitir informação. O artista Miguel Rio Branco (1946) até chegou a trabalhar no fotojornalismo por breve período, ao ponto de integrar a prestigiosa agência Magnum, mas não foi no jornalismo que desenvolveu seu interesse e produção.


A exposição “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas e sangradas”, que a Fundação Iberê inaugura neste sábado, é uma rara oportunidade de encontrar imagens famosas e pouco conhecidas de Rio Branco. Mas é sobretudo uma chance única de entender a maneira original com que o artista usou sua fotografia para construir novas e elaboradas composições visuais. Na obra de Rio Branco, a fotografia não é apenas o registro de uma realidade vivida ou observada, mas uma janela sempre aberta, capaz de distanciar-se de um tempo e local determinados para lançar o espectador em uma nova dimensão sensorial. 


Em cada luz noturna, em cada corpo em êxtase ou mesmo em um simples sulco de muro, Rio Branco nos remete a sentimentos profundos, à fragilidade da existência ou à vulnerabilidade da vida.
Um dos nomes mais respeitados da arte e da fotografia brasileiras, Rio Branco (1946) consagrou-se com suas imagens coloridas e viscerais do Brasil, construídas a partir de uma interpretação original que denunciava a exclusão social com a força da beleza inaudita. 


Aos poucos, contudo, libertou a fotografia de seu lastro documental para construir uma sensibilidade própria, aproximando-a da música, da pintura e do cinema, suas áreas de predileção. Numa elaborada construção poética, o artista passou a tratar as imagens de seu arquivo como fossem notas musicais, unindo-as em acordes dissonantes até refiná-los em uma sofisticada sinfonia. 


Esta música, esta forma de escrita, também sugerida pelas palavras do título, talvez esteja sua contribuição mais radical, e é sobre ela que se debruça esta nova retrospectiva.
Estão presentes na exposição fotografias de quase todas as fases da carreira de Rio Branco: os raros cliques em preto e branco e 35mm tirados em Nova York nos anos 1970; as viagens Brasil adentro que marcaram as décadas de 1970 e 1980; a retomada pictórica dos anos 1990, com o encanto da fotografia em médio formato; o mergulho experimental das instalações audiovisuais; os flagrantes das metrópoles latino-americanas e mundiais, e mesmo as cenas contemplativas de viagens recentes pela Ásia ou Europa. 


Mas uma exposição de Rio Branco nunca é apenas uma coleção de boas obras ou fotografias. A maestria do artista está na reinvenção sensível das imagens para formar um conjunto coerente e conciso, que pode ser percorrido em estreito diálogo com a arquitetura do espaço. 
Muito além de cenas isoladas ou recortes do mundo, o que Rio Branco apresenta é uma viagem inédita pelos labirintos de seu inconsciente profundo, um território assombrado por delírios e paixões, onde o medo, a dor, o prazer, a morte e o gozo ecoam uma sinfonia que atravessa a todos que estiverem dispostos a vê-la e a ouvi-la.

 

 * Curador da mostra “Palavras cruzadas, sonhadas, rasgadas, roubadas, usadas e sangradas” e coordenador da área de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles


Correio do Povo
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