Vale a pena ter um Jardim

Vale a pena ter um Jardim

Virgínia Gil Araujo *

Mostra "Furta-Cor, de volta aos jardins – desenhos de Teresa Poester" está em cartaz na Ocre Galeria até 1º/7

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A exposição de Teresa Poester nos chega em meio aos alertas sobre a crise climática como consequência dos incessantes crimes eco-etno-políticos em nome de uma corrida pelo que se chama de “progresso”. Algo como tudo aquilo que não poderíamos aceitar e considerar satisfatório porque debilita a força vital está em curso. Mas Teresa, ao praticar seu pensamento artístico em plena consciência, produz séries de desenhos como um acontecimento, cumprindo assim sua função ética.

 

A artista sabe bem observar a natureza em suas caminhadas na área rural da Normandia, nos arredores de Eragny sur Epte, onde vive e fotografa a paisagem dos campos cultivados, as plantas, as árvores e arbustos em flor para depois misturá-la com os desenhos e gravuras, tornando as fronteiras da arte cada vez mais indiscerníveis. As fotografias em pequenos formatos são muitas vezes recobertas por desenhos como verdadeiras tramas que obliteram e dramatizam as imagens. Quando a fotografia é utilizada juntamente com a gravura, a imagem se torna parte dessa trama que se confunde com o gesto da artista. Nestes amálgamas percebe-se bem o quanto as cores de seu trabalho e a natureza de seu gesto são indissociáveis de sua vivência nesse cenário natural.


Nos desenhos em grandes dimensões, Teresa mostra-nos que o jardim pode ser uma compensação para o desequilíbrio ecológico mesmo quando reinventado como desenho. Tanto a natureza quanto o desenho oferecem um sem-número de possibilidades, pois com imaginação a artista nunca se cansa de maravilhar-se diante desta paisagem. Nos seus desenhos sempre descobrimos modos surpreendentes de novas expressões. A suavidade aveludada produzida pelo uso que faz de alguns pigmentos esfregados diretamente no suporte nos conduz ao sentir, à pele, às cores nos poros do papel. Para Teresa todo seu corpo é o instrumento do desenho, não somente o braço ou a mão, pois é o corpo que conduz à linha tremula, ao gesto imperfeito e humano.


Frente aos constantes embates que remontam às manhãs cinzentas, Teresa desenvolve um “saber-do-corpo”, o saber de nossa condição de vivente – dos afetos, da sexualidade, da linguagem e do desejo, como possibilidade de resistência gerada pelo processo de subjetivação, gestado na intimidade. Ao trabalhar de pé, ela dança ou luta com o desenho estabelecendo uma relação corpo a corpo na mesma posição vertical do papel em grande formato. Assim, seu modo de desenhar propõe uma relação com o outro e o introduz à mudança, à diferença, que lhe remete a modos de coexistência.


A natureza do interior da França, em suas estações bem definidas, a ensina a desenhar. Os galhos secos e ásperos na paisagem em preto e branco do inverno a levam a um combate frente ao suporte, a uma linha mais geométrica, mais dura. Na meia estação, os tons são sutis, os gestos suaves. Já no verão, a natureza engravida, se torna orgânica e as linhas circulam livremente sobre o papel.
Se Teresa altera as posições tradicionais de natureza e cultura, de sujeito e objeto, de dentro e de fora, nos orienta para uma política do solo, da terra, da planta, clarificada através da imagem fotográfica misturada ao desenho para interpretar a realidade em transformação. Tampouco olha para essa natureza como uma potência absoluta entre todas as forças que a compõem, como pretendem os arautos messiânicos de um paraíso terrestre, pois o planeta é um território que tem que ser incansavelmente protegido e conservado por cada existência humana que compõe a sociedade, o que intrinsecamente inclui seu universo relacional.


A volta aos jardins alimenta-se de ressonâncias de outros esforços da artista na mesma direção e da força coletiva que a cultura promove pelo seu poder de polinização e sinergia. Ao transitar por campos poéticos e pelo corpo como linguagem, naturalmente Teresa abre caminho para a arte insurgente através dos gestos cotidianos.

 

* Historiadora e crítica de arte, professora da Unifesp, pós-doutoranda do PPGAV da Ufrgs.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895