Barroso produz os “brasileiros sem pátria”

Barroso produz os “brasileiros sem pátria”

Após a canetada do ministro, brasileiros e estrangeiros que viajaram ao exterior só poderão retornar ao país com o comprovante vacinal

Guilherme Baumhardt

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Há um filme bastante conhecido, estrelado pelo ator Tom Hanks e que o leitor provavelmente já assistiu. “O Terminal”, de 2004, conta a história de um sujeito que fica preso em um aeroporto, logo após chegar aos Estados Unidos. Durante o voo, o país de origem do protagonista passa por um golpe de estado, fazendo com que seu ingresso em solo norte-americano seja vetado. O passaporte, de uma hora para a outra, vira apenas um pedaço de papel sem valor algum. O problema é que ele também não pode retornar, porque as fronteiras foram fechadas. Com isso, um aeroporto passa a ser a sua nova casa.

Em 2021, graças a uma decisão estapafúrdia de um ministro do Supremo Tribunal Federal, corremos o risco de ver um absurdo semelhante se repetir, desta vez na vida real. Pela caneta do excelentíssimo, ilustríssimo, poderosíssimo ministro Luís Roberto Barroso, todos os residentes no país, brasileiros ou estrangeiros, que viajarem ao exterior a partir desta quarta-feira, dia 15, só poderão regressar ao Brasil com o comprovante vacinal, atestando a aplicação dos imunizantes contra a Covid-19.

A vacinação contra o coronavírus não é obrigatória no Brasil. Aliás, não é em nenhum país desenvolvido do planeta. É nítida a insatisfação em determinados setores que adorariam ver uma decisão que deve ser individual e norteada pela liberdade se transformar em “política pública” – falo da vacinação compulsória. Como não conseguiram pelos caminhos existentes em uma democracia (mesmo que capenga como a nossa), eles tentam chegar ao objetivo por vias tortas.

Se a imunização contra o coronavírus não é obrigatória, o que pretende Barroso? Holofotes? Fustigar mais uma vez os demais poderes? Ou transformar os aeroportos brasileiros em cenários para uma sequência do filme “O Terminal”? Trata-se de uma canetada estúpida, vazia, e que inauguraria uma nova era: a dos brasileiros sem pátria. Não porque foram exilados ou porque foram obrigados a deixar o país em função da fome e da miséria. Ou ainda porque foram expulsos em função de um regime ditatorial... opa, peraí, fala-se tanto em “ditadura da toga” que nesse caso... deixa pra lá.

Alguns podem argumentar dizendo que determinados países exigem o comprovante vacinal para estrangeiros. Sim, é verdade. Mas não tenho notícia de alguma nação que esteja barrando seus próprios cidadãos com base em um papel de valor altamente discutível e questionável.

Com os índices de vacinação existentes hoje no Brasil, a discussão sobre o famigerado passaporte vacinal já deveria ser página do passado. Beira o absurdo que um país que já aplicou mais de 315 milhões de doses (entre primeira, segunda, dose única e dose extra) siga debatendo um absurdo que não atinge o objetivo ao qual se propõe – frear o contágio. Nenhum dos imunizantes oferecidos até agora tem caráter esterilizante, ou seja, diferentemente do que ocorre com vacinas como as do sarampo, febre amarela e outras, as doses contra a Covid-19 não evitam o contágio. Oferecem algum grau de proteção, que é bem-vindo, mas não impedem que um sujeito vacinado contraia a doença e contamine outros.

O tal passaporte vacinal até agora só serviu para uma coisa: despertar instintos despóticos e tirânicos de gente que tem uma caneta poderosa na mão. No caso da decisão de Barroso e voltando ao filme citado na abertura da coluna, corremos ainda o risco de ver a produção de cenas dignas dos tempos da Embrafilme, nossa estatal de cinema, coisas que só o Brasil é capaz de produzir.


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