Escravo moderno

Escravo moderno

O cartão de crédito é impiedoso

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Não há para onde fugir, não há para onde correr. O sinal do celular pode ser rastreado. As redes sociais denunciam meus lugares favoritos, os locais que frequento. O cartão de crédito é impiedoso. Deixa rastros e marcas, como se fossem minhas digitais. Mesmo que eu responda “não” quando a caixa pergunta se desejo “colocar o CPF na nota”, o governo saberá onde estive, o que comprei e quanto gastei. De nada adianta tentar me esconder. Sou um escravo do Estado.

Trabalho todos os dias, muitas vezes muito além da minha carga horária contratual – e trabalho feliz, porque eu quero, porque é o meu ofício, porque notícia não tira folga e nem tem hora marcada para acontecer. E não é o meu empregador, o meu patrão que impõe isso. Se há alguém que faz isso é ele, o Estado! Enquanto escrevo estas linhas, eu e outros 200 milhões de brasileiros já pagamos, sob a forma de carga tributária, mais de R$ 690 bilhões em impostos. Movimentar esse mastodonte chamado Brasil demanda sangue e suor.

Início do ano é a hora de acertar as contas com o Leão. Anos atrás fiz as contas e vi que os valores descontados em folha, sob a forma de Imposto de Renda, eram superiores ao valor pago com meu plano de saúde. Meu e da minha família. E estou falando apenas do Imposto de Renda, sem contar PIS, Cofins, IPI, ICMS, IPTU, IPVA, ISS... É imposto que não acaba mais. É dinheiro que sai do meu, do seu, do nosso bolso. Não há opção. Pague ou aguente as consequências.

Se eu não quitar o IPVA ou o licenciamento do carro, por exemplo, corro o risco de ter o veículo guinchado. E serei obrigado (tal qual um escravo) a pagar as diárias do depósito, assim como o dono do caminhão que levou o carro até lá. E não tem refresco. Não adianta chorar e dizer que é com o carro que eu garanto o meu ganha pão, que sem ele as chances de pagar os valores atrasados caem drasticamente. Esquece. A conta só fica maior. Não são chibatadas, mas é o Estado açoitando o cidadão. Sem dó, nem piedade.

Eu não queria, mas pelo visto serei obrigado mais uma vez a financiar obras em países inadimplentes. O fruto do meu trabalho, do meu suor, deverá ser canalizado para bancar portos, pontes, metrôs em países governados pela companheirada. Não adianta ranger os dentes, não adianta protestar. Esta turma, dos amigos do rei, pode colocar a dívida no prego, com o famoso “devo, não nego, pago quando puder”. Nem mesmo os charutos cubanos, citados como garantia de pagamento pelo Porto de Mariel, vieram parar por aqui. Mas experimente ficar devendo para a Receita Federal. Isso que eu chamo de viver perigosamente.

Pensei em chamar o Ministério Público do Trabalho, na vã esperança de que possa fazer uma denúncia contra o governo. A queixa? Trabalho análogo à escravidão. Já que eu não tenho escapatória e o conceito é bastante elástico – debaixo dele cabe quase tudo –, quem sabe um fiscal ou auditor não se sensibiliza.
Aí eu descubro que o meu dinheiro, por meio de impostos, paga, também, o salário deles. Desisto.

Precipitados

A Polícia Federal, com os elementos que tem até aqui, isentou as vinícolas da Serra de qualquer envolvimento no caso das denúncias de trabalho análogo à escravidão. Arrisco ir além: não me surpreenderia se a conclusão contra a terceirizada apontasse em sentido muito mais ameno do que aquele verificado inicialmente. No lugar de “escravidão”, quem sabe, “más condições”. Nada além. Ao que tudo indica a montanha pariu um rato, mas o estrago já foi feito.


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