Nosso inexplicável amor por mentirosos

Nosso inexplicável amor por mentirosos

Política brasileira ainda insiste na cultura paternalista

Guilherme Baumhardt

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Assim como todos, tenho algumas referências na profissão. E o jornalista Ricardo Boechat – que nos deixou cedo demais – foi e ainda é uma delas. Sou um privilegiado por ter compartilhado bons momentos com ele. Uma das mais importantes lições ensinadas foi: tão ou mais importante do que duvidar das autoridades de plantão (políticos, em especial), é fundamental reorganizar o grau de credibilidade e dar a devida importância para cada uma das fontes. Há exemplos na história que comprovam a tese. Grandes escândalos foram escancarados ou até comprovados não por fontes oficiais ou de alta patente. Não foi um ministro que sepultou as chances de Antonio Palocci um dia disputar a Presidência da República, mas um caseiro chamando Francenildo, que teve a coragem de revelar que o então todo poderoso chefe da Casa Civil frequentava uma mansão, no Lago Sul, em Brasília, palco de reuniões entre lobistas, empresários e prostitutas.

No caso Watergate, recentemente lembrado pela Coluna, foram necessários mais de 30 anos para que viesse à tona a identidade da principal fonte dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein. “Deep Throat”, o “Garganta Profunda”, era William Mark Felt, o número 2 do FBI (a polícia federal dos Estados Unidos), nos anos 1970. Exemplos assim existem em grande número ao longo da história. Portanto, Boechat estava certo. O careca, com aquele sotaque carioca inconfundível, dizia mais ou menos o seguinte: “Essa turma [políticos principalmente] mente para nós todos os dias. E mesmo assim eles são ouvidos sempre e quase nunca devidamente questionados ou emparedados”. Tenho uma curiosidade gigantesca para saber o que Boechat diria dos dias atuais, mas desconfio que, mesmo com posicionamentos com os quais eu muitas vezes não concordava, aquela postura quase anárquica o colocaria como um defensor da liberdade. Jamais teremos certeza.

Se políticos são, com algumas boas e honrosas exceções, mentirosos contumazes, por que não conseguimos enterrar de uma vez por todas nossa cultura do Estado paternalista? Somos assim tão incapazes? Tão ineptos? A pandemia escancarou mais uma vez essa vertente bastante nossa, mas que não é uma exclusividade latino-americana. Em diversos países do mundo povos sucumbiram aos déspotas de plantão.

O pânico (que é muito pior do que o medo) instalado no planeta após a chegada do coronavírus explica em parte o fenômeno. Mas ele sozinho talvez seja insuficiente para explicar um grau de subserviência que é assustador. Levantar a voz contra arbitrariedades se transformou em atalho para ganhar o rótulo de “negacionista”. Questionar virou crime, mesmo que existam razões em abundância para cobrar, perguntar. A ciência, que deixou de ser ciência para virar só uma palavra da moda, é feita de questionamentos. Sobre a eficácia da vacina, sobre a estratégia a ser adotada, se estamos investindo nosso dinheiro no caminho certo. Fazer ciência é isso. É desconfiar, com base em dados e, principalmente, em métodos. Durante a pandemia, inauguramos a era da “ciência fast food”. Em poucas semanas descobrimos que uma determinada medicação era ineficaz para o tratamento da Covid-19. Sem qualquer critério científico, a“ciência” decidiu que impor severas restrições à população, cobrando um alto custo, era um ótimo remédio para combater o avanço do vírus, mesmo com fortes evidências no sentido oposto.

Estamos prestes a iniciar a vacinação para crianças com idades entre 5 e 11 anos. Já escrevi e repito: a carteira de vacinação da minha filha é motivo de orgulho, com todas as doses em dia. Mas entendo os pais que estão receosos neste momento. Há dúvidas. E não são apenas nossas. Em Israel, país que vacinou bem e rápido a população adulta, a aplicação de doses para as crianças avança a passos de tartaruga. E se, por um acaso, no lugar de comprar doses, investíssemos, no Brasil, esse dinheiro para tratar os poucos e raros casos graves de Covid-19 nessa faixa etária? Não seria mais eficiente, não apenas do ponto de vista econômico, mas também de saúde? É apenas uma pergunta, mas que jamais terá uma discussão no Brasil e fora dele, porque debater qualquer estratégia que não passe pela vacina virou tema proibido.

Como ainda resta esperança, digo: felizmente ainda há “juízes em Berlim”, para frear aqueles seres que se julgam iluminados e dotados do direito de guiar nossas vidas. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte decidiu colocar um freio nas pretensões do presidente democrata Joe Biden, de impor a vacinação para funcionários de empresas privadas. Na França, milhares e milhares de pessoas foram às ruas e pediram em alto e bom som: “Liberté, liberté, liberté”. O mesmo fenômeno já ocorreu em outros países do mundo. Ainda bem.

Em tempo: o colunista acredita em vacinas, já tomou suas doses, mas é visceralmente contra qualquer imposição neste sentido, especialmente vinda do Estado.


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