Picanha

Picanha

Guilherme Baumhardt

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O primeiro mês já passou. Foram 31 longos dias e, até agora, nada. Todas as noites, ao longo deste período, ao deitar a cabeça no travesseiro, o pensamento era um só: “Quem sabe amanhã?”, dizia em voz baixa, entristecido, o seu Zé para a esposa, a dona Maria. Deitada ao lado, ela, muito mais cética, respondia: “Esquece isso, homem. Quem vive de sonho é padeiro. ‘Bora’ dormir que amanhã é dia de batente”. Quatro finais de semana, quatro sábados, quatro domingos e... nada de picanha.

Seu Zé lembra da propaganda política, do período eleitoral, das promessas. Desde que recebeu a faixa presidencial, Lula já esteve na Argentina e no Uruguai. Falou em socorrer os vizinhos latino-americanos, em estender a mão para governos alinhados ideologicamente. Já há sinalização – mais uma vez – de obras bancadas com o dinheiro do seu Zé e da dona Maria, mas não na rua ou no bairro deles, mas sim do outro lado da fronteira. É um pedido de socorro da Argentina, uma ajuda solicitada pela Venezuela, as represas que a Nicarágua tanto espera, quem sabe uma nova mesada para Cuba, após o final do “Mais Médicos”? E, por aqui, nada de picanha.

A classe artística brasileira agora respira aliviada. O orçamento da cultura prevê 10 bilhões de reais, boa parte dessa grana é fruto de incentivos para gente que não precisa de incentivo. Artistas (?) consagrados, com nome e reputação no mercado nacional, mas que pelo visto adoram um negócio de risco zero. No lugar de empreender, colocar uma peça na rua, escrever um novo roteiro para filme e pagar para ver, ou seja, esperar o resultado da bilheteria e colher o bônus (ou amargar ônus), resolve bater às portas da “Mamãe Estado”, em busca de projetos incentivados. E nada de picanha para o seu Zé...

Já tem empreiteira sorridente, com os lábios indo de uma orelha à outra, com a sinalização de que o protagonismo estatal na economia voltará. Obras e mais obras, decididas em Brasília, pagas com o dinheiro do contribuinte, voltarão a acontecer. Se a conclusão vai demorar um ou dez anos, pouco importa, o negócio agora é retomar aquele festival de propaganda. Alguém aí lembra do PAC, o tal “Programa de Aceleração do Crescimento”? Veio o primeiro. E depois o segundo. E aí, em um estalar de dedos, tinha PAC da mobilidade, PAC das cidades, PAC da saúde. Era PAC para todo lado. De concreto, vida real, muito pouco. Mas muita, muita propaganda. Obras terminadas? Poucas. Inacabadas? Várias. Mas serviu para garantir espaço no noticiário, para plantar esperança, mesmo que depois a colheita fosse de frustrações.

Seu Zé passa todos os dias na frente do açougue do João, um amigo de longa data. A picanha está ali, no balcão refrigerado. Tão perto. E ao mesmo tempo tão longe. Ele já imaginava aquela gordura pingando na brasa, levantando aquela fumaça gostosa, para deixar a vizinhança com água na boca.
Outro dia apareceu um argentino pelo bairro. Veio procurar emprego. A economia no país dos campeões do mundo não é das melhores. Trabalho até tem, mas a inflação devora tudo e, na metade do mês, já não tem mais dinheiro na carteira. Seu Zé não ficou feliz. Ouviu do hermano que por lá o atual presidente, Alberto Fernández, amigo e parceiro de Lula, também prometeu carne durante as eleições. No lugar da picanha, a promessa lá era a volta do “assadito”.

O Zé foi pesquisar e descobriu na Internet vídeos de argentinos irritados, porque acreditaram em Fernández. Gente quebrando churrasqueiras e parrillas, indignadas, porque o “assadito” nunca chegou. Dona Maria viu a cena. E viu, também, o Zé olhando para a marreta e depois para a churrasqueira. E disse: “Na próxima tu deixa de ser bobo. E 'bora' dormir que amanhã é dia de batente”.


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