Ziriguidum? Ziriguizero

Ziriguidum? Ziriguizero

O Carnaval virou um produto para exportação

Guilherme Baumhardt

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Nunca gostei de Carnaval, nem mesmo quando era criança. Podem me chamar de chato, velho, murrinha. Não me importo. Isso não significa que eu não respeite a festa e aqueles que curtem os dias de folia. Período, aliás, que varia bastante de uma região para a outra do país. Em alguns lugares, são quatro dias – cinco se contarmos a quarta de Cinzas. Em outros, dura uma semana, duas. É festa que não acaba mais. Do ponto de vista econômico, não deixa de ser interessante. Movimenta o comércio, setor de serviços, hotéis, restaurantes. Mas admito: fico feliz ao ver que aquele “parou geral” que ocorria anos atrás está deixando de ser unanimidade. Era quase uma imposição. Não é mais assim.

No interior do Rio Grande do Sul, onde escrevo estas linhas, o sábado e a segunda-feira foram de comércio aberto. Pouquíssimas lojas fechadas. Isso é ótimo. Significa que nos livramos de certas amarras e que a vida real bateu à porta – trabalhar é preciso. Talvez seja um sinal – um dos primeiros – de uma virada no Brasil, para melhor. Um desinteresse que é, excepcionalmente, bem-vindo. Não faço ideia de quem é a menina que brilha nas vinhetas da emissora oficial do Carnaval. Não sei nem mesmo se ainda existe esta figura, cumprindo este papel. Acho que não sou o único.

Talvez o Carnaval esteja sentindo os mesmos efeitos de outros eventos de dimensão semelhante. Ele foi industrializado, empacotado e, nos últimos anos, vítima do politicamente correto. Era uma festa de rua, de bairro, dos clubes. Virou um grande produto pronto e preparado para a exportação. Gente aglomerada em camarotes caríssimos, que servem para reunir pseudoartistas, se acotovelando para tirar fotos, gravar vídeos, desfilar com o novo namorado ou namorada. Exibicionismo puro. Importante é produzir material para as redes sociais. Se eles gostam de samba ou não, pouco importa. É mais ou menos como a Fórmula 1, que hoje corre em países com zero interesse ou tradição no automobilismo. Mas já que a grana é boa...

Além do mais, acredito que alguns não querem mais ser coniventes com uma festa que tem laços estreitos com o crime organizado. Ou ao menos parte dela. Houve um período em que era o jogo do bicho. Hoje a suspeita recai sobre o tráfico de drogas. Um amigo, anos atrás, realizou o sonho de acompanhar os ensaios em uma famosa escola de samba do Rio de Janeiro. Ele caminhou comunidade adentro até encontrar o barracão. Na porta, um sujeito vendia cocaína livremente, sentado em uma cadeira de praia. Abaixo do assento, um balde repleto de pó branco. Talvez fosse farinha. Vai saber.

Os sambas-enredos também ficaram empastelados, com altas doses de hipocrisia e reféns do politicamente correto. Letras clássicas, de marchinhas antigas, que serviram para imortalizar a data como a festa popular mais tradicional do país, hoje não servem mais. O Carnaval, quem diria, ficou careta. Já teve escola homenageando um país e foi acusada de receber dinheiro para fazer isso. No Carnaval deste ano, em Florianópolis, teve agremiação que homenageou o comunista Luís Carlos Prestes, chamado de “Cavaleiro da Esperança”. Pesquise por “Elza Fernandes” ou “Elvira Cupello” e o papel de Prestes no episódio. No lugar de criar, o verbo agora é lacrar.
Ando sem paciência para certas coisas. Além do mais, salvo boas e honrosas exceções, acho enfadonhas as letras, o ritmo daquilo que é levado para a avenida. Parece ser sempre mais do mesmo, uma repetição com pequenas e quase imperceptíveis variações. Parece um formulário a ser preenchido: o autor da epopeia, as agruras enfrentadas por ele, a perseguição e as injustiças, até a redenção. Respeito quem gosta e quem fez história nos carnavais. Mas me dou o direito de não gostar. Posso estar azedo em excesso.

Que o ano, finalmente, comece!


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