A relatividade da democracia

A relatividade da democracia

“Se Merkel pode ficar 16 anos no poder, por que Ortega não pode?”

Jurandir Soares

publicidade

O presidente Lula declarou em alto e bom som nesta quinta-feira, ao ser questionado sobre a Venezuela, que “o conceito de democracia é relativo”. Ou seja, deixou de ser algo definido e passou a ser flexibilizado de acordo com a posição política de quem está no poder. Assim, na visão de Lula fica claro que Venezuela, Cuba e Nicarágua são democracias. Tanto que para os dois primeiros financiou obras com nosso dinheiro e, também na quinta-feira, defendeu os caloteiros, afirmando que irão pagar suas dívidas. E ainda disse que foi um bom negócio para o Brasil fazer obras naqueles países. Quanto à Nicarágua, dias antes, limitou sua ação a um pedido “a Ortega para que solte o bispo”.

Aliás, com relação ao ditador nicaraguense pronunciou certa ocasião uma preciosidade: “Se Merkel pode ficar 16 anos no poder, por que Ortega não pode?” Estava simplesmente comparando a então primeira ministra da Alemanha que, graças ao processo democrático e sistema parlamentar lá vigente, se reelegera por todo esse período, com o ditador da Nicarágua que vem se mantendo no poder graças à eleições fraudulentas. E está sendo condenado até pela Igreja Católica que dera suporte à Frente Sandinista de Libertação Nacional, da qual Ortega era uma liderança, para desbancar a ditadura de Anastacio Somoza. E quanto mais as lideranças da Igreja o criticam, mais ele as prende. Seus cupinchas chegaram a atear fogo à catedral de Manágua.

Coincidentemente, um dia após Lula relativizar a democracia da Venezuela, o regime de Nicolás Maduro, que vem sendo cobrado por eleições livres, afastava do pleito o maior nome da oposição. María Corina Machado, de 55 anos, foi inabilitada de exercer cargos públicos por 15 anos, segundo decisão da Controladoria-Geral. O curioso é que ela fora condenada, em 2011, a uma pena de inabilitação de um ano, acusada de “irregularidades administrativas”. No entanto, agora, quando se aproximam as eleições e nome dela cresce entre os oposicionistas do regime, resolveram aplicar uma inabilitação de 15 anos. Coincidentemente, aqui no Brasil, onde ainda não somos uma Venezuela, o ex-presidente Jair Bolsonaro, nome forte da oposição, também foi afastado, por oito anos. Mas aqui a oposição tem outros nomes fortes e pode se articular com vistas à próxima eleição. Pelo menos é o que se espera.

Na Venezuela, a oposição vem se articulando e María Corina vinha liderando as pesquisas entre os 13 pré-candidatos. A oposição busca um nome de consenso, porém, mais do que isto, busca garantias de que o pleito será limpo. Algo que não acontece há muito no país. Na última eleição presidencial, por exemplo, uma equipe de observadores da União Europeia esteve presente. Porém, alegaram que não tiveram as mínimas condições de desenvolver o seu trabalho. Sem contar que nomes de expressão da oposição foram sistematicamente colocados na cadeia e impedidos de concorrer. Assim aconteceu com Henrique Capriles, Leopoldo López e Antonio Ledezma, entre outros. Até um que tem um sobrenome cultuado pela esquerda, Freddy Guevara, também foi colocado atrás das grades.

Os movimentos de protestos da população foram sistematicamente desarticulados pelas ações de milicianos, que passavam de moto atirando contra a população. E ninguém mais teve coragem de ir às ruas depois do grande protesto de 2017, que culminou com as mortes de mais de 100 manifestantes. Aliás, um tema que foi retomado nesta semana pelo Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia, que abriu processo contra o ditador Nicolás Maduro por “crime contra a humanidade”. Mas, para Lula, conforme tentou aplicar durante reunião de presidentes latino-americanos que convocou para Brasília, “a Venezuela é vítima de uma narrativa”. Pelo jeito não serviram para nada as contestações que levou na ocasião dos presidentes do Uruguai, Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric. Tampouco adiantou a manifestação dos presidentes, que voltaram para seus países antes do jantar oferecido por Lula. O que fizeram em repúdio pelo fato de Lula querer lhes empurrar Maduro goela abaixo como se fosse um democrata. Porém, para Lula o conceito de democracia é relativo.


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895