Para ficar tudo joia rara ao som de Caetano em Porto Alegre
Editor do Caderno de Sábado, Luiz Gonzaga Lopes, analisa o show da turnê "Meu Coco", do músico baiano
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Desde que começou a conceber o disco “Meu Coco” em 2019, Caetano Veloso começou a fazer à maneira memorialista de “Verdade Tropical”, livro de 1997, com edição comemorativa de 20 anos em 2017, uma espécie de diário de bordo dos seus anseios com este disco que seria o primeiro de inéditas após quase uma década e começou a falar de seu amor pelas canções: “Muitas vezes sinto que já fiz canções demais. Falta de rigor?, negligência crítica? Deve ser. Mas acontece que desde a infância amo as canções populares inclusive por sua fácil proliferação. Quem gosta de canções gosta de quantidade”. Após esta digressão caetaneada, faço um corte para a tropical noite de 16 de dezembro no Auditório Araújo Vianna, com aqueles 30 graus do quase verão gaúcho em que Caetano voltou a Porto Alegre com a turnê “Meu Coco”.
O início já nos coloca no clima de comunhão com os nomes dos músicos e de toda a equipe técnica ditos com o palco ainda escuro. Ao iluminar do palco, a cenografia inspirada em um estudo de Helio Eichbauer batizada de Constelação Espacial já se destaca com Caetano entrando ao centro, todo de branco e com foco de luz branca e os cinco músicos – Lucas Nunes, Alberto Continentino, Kainã do Jêje, Rodrigo Tavares e Thiaguinho da Serrinha, ficando em dois tablados diagonais para o delírio do Araújo lotado. O começo é com “Avarandado”, uma homenagem a Gal Costa, com quem gravou esta música em “Domingo”, de 1967, mas também cantou com João Gilberto. Assim vem o gancho para a segunda música que dá nome ao novo disco de 2021 e à turnê, “Meu Coco”, com esta miscigenação e diversidade brasileira de mulatos, híbridos, mamelucos e cafuzos e os dizeres: “João Gilberto falou/ e no Meu Coco ficou/ Quem é, quem és, quem sou?/Somos chineses”, numa letra que exalta também as grandes cantoras brasileiras, pois “com Naras, Bethânias e Elis/ faremos mundo feliz”. O novo disco segue com “Anjos Tronchos”, com uma sonoridade que nos remete a “Abraçaço” e faz reflexão sobre a tecnologia e o humano, coisas desta união com o multi-instrumentista Lucas Nunes, amigo do filho Tom Veloso, que produziu o disco, toca guitarra, violão e teclados no show, sendo também o diretor musical.
Para apaixonar ainda mais os fãs que cantam todas as músicas, a ode a São Paulo, “Sampa” faz o avesso, do avesso, do avesso da emoção e alguma coisa acontece até chegar “Muito Romântico” e outra canção nova, “Não Vou Deixar”, com uma base meio rap, meio funk, para que Caetano fale de resistência porque sabe cantar: “Não vou deixar, não vou deixar/ Não vou deixar porque eu sei cantar”, pensando no futuro na música endereçada ao neto Benjamin, filho de Tom: “Eu grito e repito eu não vou/o menino ouviu e comentou/o vovô tá nervoso, o vovô”, que termina com um solo de percussão de Kainã e Thiaguinho da Serrinha. "Enzo Gabriel" também projeta o futuro, com os nomes mais registrados no país nos anos em que Caetano criou a música, entre 2019 e 2020. Assim, o show segue, Caetano explica que não estava tão bem nesta noite, mas que o palco o anima e diz que não podia deixar de tocar uma música do disco “Transa”, gravado em Londres, que completou 50 anos em 2022, influenciou gerações sucessivas e vem com “You Don´t Know Me”. Os “Trilhos Urbanos” são percorridos por Caetano com a música que dá título ao disco de 1986. Caetano fala com a plateia sobre a levada que Gilberto Gil definiu de Marcha Caetaneana, que conduz “Trilhos Urbanos” e introduz um papo sobre a banda que ele formou chamada A Outra Banda da Terra, e a música que segue é “A Outra Banda da Terra”, uma homenagem à banda e fala do sotaque com acento no “erre” retroflexo do interior de SP, tipo “serrrtão” e já emenda “Araçá Azul”, que batiza o disco de 1972, o seu quinto de estúdio.
Um momento doce do show é a eterna homenagem ao jornalista e poeta piauiense Torquato Neto, falecido em 10 de novembro de 1972, com a canção “Cajuína”. Impossível não se emocionar. E depois três grandes sucessos que fazem o público dançar, cantar e fazer da Bahia o centro do mundo, com “Reconvexo”, “O Leãozinho” e “Itapuã”. Com “Pulsar” e “A Bossa Nova é Foda”, um petardo do disco “Abraçaço”, de 2012, Caetano contagia e eletriza o público. Aí volta toda a lembrança de Gal, com “Baby” e uma incidental “Diana” e depois “Menino do Rio” para dar um calor e provocar arrepios. Como Chico Buarque tem a sua “Que tal um Samba”, Caetano vem com a novíssima “Sem Samba Não Dá”, que é uma elegia às fusões e aos vários gêneros musicais e expoentes que o Brasil produz como “Maravília Mendonça”, a sertaneja morta em 2021, Gloria Groove, Ferrugem, Duda Beat, Djonga e outros. A soberana “Lua de São Jorge” termina o show, mas ainda viria um bis, que normalmente era formado por quatro músicos, mas fica em duas canções, com a bossa “Mansidão” e encerrando com a canção de 1977, “Odara”, que exala paz e os dizeres: “Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara/ Pra ficar tudo joia rara” e realmente um show de Caetano por quase 1h30min aos 80 anos é mesmo uma joia rara, uma verdade mais do que tropical aqui por estes pagos.