50 anos da Conferência de Estocolmo: acordos entre países não acompanham urgência climática

50 anos da Conferência de Estocolmo: acordos entre países não acompanham urgência climática

Apesar de algumas conquistas, ainda se está longe do cumprimento dos objetivos acordados ao longo dessas décadas

Por
Giullia Piaia e Veridiana Dalla Vecchia

Marco do início das discussões globais sobre problemas ambientais, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, mais conhecida como Conferência de Estocolmo, completa 50 anos em 2022. De lá pra cá, muitos países foram se juntando ao objetivo de minimizar os impactos causados pelo ser humano ao meio ambiente, incluindo à nossa própria espécie. Os resultados, porém, não são animadores. Apesar de algumas conquistas, ainda se está longe do cumprimento dos objetivos acordados ao longo dessas décadas. 

Precursor de um regime ambiental internacional visando à cooperação entre os países, o encontro em Estocolmo contou com a presença de delegações de 113 países na capital sueca. A Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, resultado da conferência, defende a necessidade de preservar a fauna e a flora silvestres, reduzir a quantidade de resíduos tóxicos, combater a poluição, diminuir o volume de lixo e proteger os mares e vida marinha, a fim de preservar a própria vida humana. O documento estabelece objetivos políticos internacionais e princípios jurídicos que serviram de base ao discurso ambiental dos anos seguintes.

O encontro organizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) foi resultado de uma série de observações e pesquisas científicas que passaram a ser produzidas especialmente a partir dos anos 60 sobre os impactos decorrentes das atividades industrial e agrícola. Relatos sobre as consequências das chuvas ácidas, temores em relação ao uso da energia nuclear e uma série de outras características que ultrapassavam as fronteiras dos países e impactavam diferentes nações surgiram naquele período. “Além desse elemento (transfronteiriço), esses problemas ambientais foram ganhando nova camada, que seria intergeracional: uma geração vai causando um problema para outras gerações”, explica Veronica Korber Gonçalves, professora de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Meio Ambiente da Ufrgs (Gerima/Ufrgs).

A COP 26, em 2021, foi a última conferência do clima realizada. A COP 27 acontecerá este ano, no Egito, em novembro. Foto: Daniel Leal-Olivas / AFP / CP Memória

O sentimento de preocupação com o direito intergeracional vai ganhando relevância na pauta cultural da década de 60, o que leva a uma resposta organizada do ponto de vista da política internacional. A conferência é precedida e motivada por esses acontecimentos. “O ponto principal da conferência é que ela estabelece o meio ambiente sadio e equilibrado como um direito humano. Isso é algo novo. Já existia a Declaração de Direitos Humanos, mas, ali, o meio ambiente é alçado a essa categoria”, analisa Veronica.
Essa preocupação com as gerações futuras ficou refletida na Declaração de Estocolmo em seu primeiro princípio, que diz: “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras”.

“Essa é a grande novidade dessa declaração”, afirma o principal redator do projeto que resultou na Lei que criou a Política Nacional do Meio Ambiente no Brasil, Paulo Affonso Leme Machado. “Ela estabelece um dever jurídico e ético de que nós, que estamos vivendo hoje, tenhamos responsabilidade sobre as condições do ambiente que nós vamos passar para os nossos descendentes. Isso é o direito intergeracional”, destaca o advogado.

Essa primeira conferência não buscou estabelecer metas compulsórias, mas um conjunto de princípios e valores gerais. Isso não significou, porém, que, a partir de 1972, políticas ambientais passaram a ser unanimidade.

Divergências de Estocolmo

Sobretudo nesta primeira conferência da ONU, há divisão clara entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento (ou Norte e Sul). O Brasil, enquanto país em desenvolvimento, manteve posição contrária à assunção de um compromisso com a preservação do meio ambiente. Essa postura se deu a partir da interpretação de que Estados em desenvolvimento tinham o direito de crescer economicamente e, para isso, seria necessário utilizar recursos naturais e priorizar setores muitas vezes poluentes. “A tensão entre crescimento econômico e proteção ambiental não era algo só do Brasil, nos países desenvolvidos ela também permanecia. É um tema conflitivo. A questão ambiental não tem nada de consensual, de unânime. É conflitiva porque coloca em questionamento nossa forma de viver, de se relacionar com o ambiente”, esclarece Veronica. Segundo a professora, esse conflito estava presente em 1972 e permanece hoje, ainda que o tema esteja sendo mais debatido e difundido. 

A segunda conferência organizada pela ONU acontece 20 anos após a primeira, no Rio de Janeiro e com participação de 178 países. Foto: CP Memória

Outro ponto de tensão era a relutância dos países desenvolvidos em permitir que o resto do mundo usasse dos mesmos métodos que eles usaram para alcançar o desenvolvimento. “A reconstrução europeia (pós-Segunda Guerra Mundial) levou à Conferência de Estocolmo. Só que a abordagem deles era ‘não podemos deixar o resto do mundo fazer o que fizemos porque não tem recurso para todos’. Na cabeça deles, a explosão demográfica no Sul era a grande ameaça para o planeta”, diz Ana Flávia Barros-Platiau, professora de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB) e diretora do Brasilia Research Centre, do Earth System Governance. 

Esse ponto foi rebatido, principalmente, pela primeira-ministra da Índia à época, Indira Gandhi. “Ela foi uma grande líder nessa conferência e questionou: ‘Não queremos empobrecer o meio ambiente, mas nós não podemos esquecer da triste pobreza de um grande número de pessoas’”, complementa Leme Machado.

União pelo desenvolvimento sustentável

A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, estabelecida a partir da Rio 92, foi ratificada pela maioria dos países, mas o mesmo não aconteceu com o Protocolo de Quioto. Na foto, George H. Bush participa da Rio 92. Foto: CP Memória

A segunda conferência organizada pela ONU acontece 20 anos após a primeira, dessa vez no Rio de Janeiro e com a participação de 178 países. A Rio 92 (ou Eco 92), oficialmente Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, foi um encontro de muitos avanços, mas não necessariamente concretos. “Foi com as três convenções lançadas no Rio, Convenção sobre Diversidade Biológica, Convenção de Combate à Desertificação e Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima, que começamos a ter metas”, observa Beatriz Mattos, pesquisadora do BRICS Policy Center, think tank vinculado ao Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (IRI/PUC-Rio).

Essas convenções são tratados internacionais multilaterais e são consideradas documentos-chave para o desenvolvimento sustentável. São documentos juridicamente vinculantes, ou seja, os Estados que os assinam são obrigados a aplicar suas disposições, que tratam de proteção da biodiversidade, redução da desertificação e estabilização da concentração de gases do efeito estufa na atmosfera.

As mudanças climáticas aumentaram a frequência de incêndios florestais nos últimos anos. Na foto, incêndio na Califórnia (EUA), em setembro de 2020. Foto: Josh Edelson / AFP / CP Memória

Dentre as convenções lançadas na Rio 92, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, da sigla em inglês para United Nations Framework Convention on Climate Change) dá início às discussões mais relevantes sobre a emergência climática, que passa a ser o tema mais debatido internacionalmente em relação ao meio ambiente pela gravidade e alcance de suas consequências. Esses debates se concretizam nas COPs, as Conferências das Partes, que acontecem anualmente. 

O que na Conferência de Estocolmo era um embate entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental, passa a ser visto, na Rio 92, sob a ótica do desenvolvimento sustentável. Ou seja, ganha força a ideia de que é possível conciliar os dois aspectos. “Não é mais dito aos países em desenvolvimento, ou para qualquer país, que é necessário diminuir seu crescimento. Mas é preciso crescer levando em conta as questões ambientais e sociais. Isso vai diminuindo as resistências dos países do Sul à conferência”, ressalta Veronica Korber Gonçalves, da Ufrgs. 

No caso brasileiro, a posição do governo vai mudando com o passar dos anos e o país começa a adotar um posicionamento mais favorável ao meio ambiente. Tanto que se candidatou para ser sede de uma das maiores conferências internacionais na área, que foi a Rio 92. A partir de então, o Brasil passa a se mostrar um país mais engajado com as pautas ambientais e de direitos humanos. “Para as negociações ambientais propriamente ditas, o Brasil ter sediado a conferência vai significar uma mudança, ou pelo menos uma tentativa de mudança na tensão entre os países do Norte versus Sul. Isso porque eram os países do Sul dizendo ‘nós estamos preocupados’, ‘nós estamos sediando a conferência’.” Conforme Veronica, é também nesse período que começa a ser mais difundido o discurso sobre a necessidade de os Estados trabalharem conjuntamente. 

O Acordo de Paris

O Acordo de Paris, que entrou em vigor em 2020, reconheceu as diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e estabeleceu como principal meta geral o aumento de, no máximo, 2 graus (e preferencialmente 1,5 grau) da temperatura do planeta acima dos níveis pré-industriais. Para atingir este objetivo, cada país apresentou metas próprias. Na última COP, no ano passado, em Glasgow, foi solicitado que, até o fim de 2022, os Estados apresentem suas novas metas, pois, até o momento, as metas do Acordo de Paris não são capazes de conter o aquecimento global no nível estabelecido pelo documento.

Foto: SOS Mata Atlântica / AFP / CP

Cooperação enfrenta desafios

Pelo menos desde Estocolmo, a maioria dos países vem tentando combinar acordos que possibilitem minimizar os impactos mais graves dos problemas ambientais e das mudanças climáticas. A cada ano que passa, as consequências das mudanças climáticas se mostram mais claras e mais graves. A ciência lança seguidos alertas sobre aumento do nível do mar, maior frequência de secas, temporais mais severos e constantes.

Acontece que, embora desde o início da Revolução Industrial, no fim do século XVIII, a humanidade venha jogando grandes quantidades de carbono na atmosfera, mais da metade da emissão de carbono ocorrida a partir da queima de combustíveis fósseis se deu nas últimas três décadas, segundo dados do Global Carbon Project. Isso significa que se despejou mais gases poluentes na atmosfera depois de se ter o conhecimento suficiente para saber dos prejuízos que isso causaria e depois de a comunidade internacional se dispor a combater esse problema.

O aumento de chuvas torrenciais, também ligado às mudanças climáticas, tem feito com que ocupações irregulares sejam devastadas com mais frequência. Na foto, comunidade Jardim Monte Verde, em Recife, em maio de 2022. Foto: Sérgio Maranhão / AFP / CP

A cooperação entre os países na maioria das vezes não é fácil, visto que, além do objetivo comum de combater as mudanças climáticas, cada um deles também busca dar conta de seus interesses, normalmente visando seu desenvolvimento econômico e/ou social. E nem sempre eles andam juntos. “Todo o processo de negociação é muito longo e complexo”, destaca a Ana Flávia, da UnB. Segundo ela, a partir do momento que um determinado texto entra em discussão, ele já tem um impacto na agenda e a negociação pode durar meses ou anos. O impacto nas relações entre países existe, então, desde o início das negociações, visto que cada Estado terá que assumir uma posição para participar da negociação.

Quando se trata dos países desenvolvidos, historicamente os responsáveis pelas maiores emissões de gases de efeito estufa, há maior poder de investimento em energias limpas, por exemplo, ou em tecnologias que auxiliem na mitigação das mudanças climáticas. Já nos países em desenvolvimento, a condição financeira mais precária dificulta o investimento em tecnologias mais limpas e prejudicam a redução das emissões de gases com efeito estufa. Para mais, os países mais pobres são os mais afetados pelas mudanças climáticas. Ainda assim, quem pressiona, muitas vezes, por políticas mais sustentáveis são os países do Norte. “Esses países são mais sérios do ponto de vista das políticas públicas. Ativistas cobram seus governos, que cobram o Brasil. Então, Noruega, Dinamarca, Alemanha e França, por exemplo, são países em que as autoridades públicas precisam prestar contas também para os seus eleitores. É uma sociedade mais organizada e mais preocupada com o que acontece nos países em desenvolvimento”, reitera a professora.

Mas, segundo Ana Flávia, esse não é o único motivo do interesse em controlar as políticas ambientais dos países pobres. “Ao mesmo tempo que eles fazem essas cobranças, eles têm políticas econômicas e ambientais por trás disso. Não interessa aos europeus, por exemplo, que o Brasil venda commodities agrícolas, como carne, café, soja ou laranja muito baratas, pois eles não conseguiriam competir com esses preços”, opina. Quando a produção agrícola é predatória, sem se preocupar com a proteção ao meio ambiente, ela se torna mais barata, quebrando a competição dos países desenvolvidos. “Então, interessa para esses países mais ricos, inclusive Estados Unidos, Canadá e Austrália, que haja um nível de sustentabilidade mais alto, porque aí os produtos ficam mais caros.”

Os interesses econômicos são sempre centrais nas negociações sobre o clima e são, no consenso dos estudiosos, o maior entrave para que realmente exista um impacto positivo para a preservação ambiental. “O que está por trás de todo problema do clima, da agenda do clima, da falta de resultado dessas negociações é justamente a transição energética. E por que é tão difícil avançar e alcançar resultados positivos nas negociações? Porque custa muito caro”, explica a professora.

A transição energética é um desafio para a maior parte dos países. Na Alemanha, apesar dos investimentos em energias renováveis, como a eólica, o carvão segue sendo a maior fonte energética. Foto: Ina Fassbender / AFP / CP Memória

Na avaliação de Ana Flávia, o uso da energia é o grande desafio de nossa geração. A digitalização e automação crescentes na sociedade fazem com que a demanda e o consumo de energia aumentem. Máquinas cada vez mais eficientes consumirão menos energia, mas também custarão mais caro. Alguns países têm, por natureza, fontes de energia mais limpas, como as hidrelétricas, enquanto outros utilizam fontes mais poluidoras, como o carvão. “A transição para os países que têm as fontes energéticas mais sujas é muito, muito cara. Então, o interesse econômico é claro. Grandes potências mundiais não têm como investir no curtíssimo prazo e mudar totalmente sua matriz energética.”

Além disso, empresas continuarão adotando as políticas mais baratas para que tenham mais lucro. “A mudança de política econômica e comercial só acontece quando a empresa entende que é lucrativo para ela ou vai ser importante no futuro ver essa mudança” complementa Ana Flávia. Do ponto de vista global, não há nenhuma autoridade que obrigue as empresas e os Estados a mudarem comportamentos, políticas ou tecnologias.

A maioria dos especialistas também concorda sobre a ineficácia, em geral, dos acordos assinados até hoje, no tocante ao impacto ambiental. O Acordo de Paris, aberto a assinaturas em 2015, tem por objetivo principal limitar o aquecimento do planeta a 2 ºC até o ano de 2100. “Com as metas que foram apresentadas pelos países signatários, a gente não vai conseguir alcançar esse objetivo final”, afirma Beatriz, do BRICS Policy Center. “Infelizmente, estamos muito longe disso. Mesmo que todas as metas apresentadas fossem cumpridas, a gente não teria condição de alcançar esse resultado em 2100.”

Ainda assim, parte dos pesquisadores acredita que seja possível conciliar interesses econômicos com a proteção climática. “As empresas e os Estados não adotarão estratégias econômicas, comerciais e políticas mais sustentáveis sozinhos, mas podem ser pressionados. Então, se não houver políticas públicas rigorosas ou consumidores que boicotem produtos, essa mudança não vai acontecer”, prevê Ana Flávia. “Não somos nós, cidadãos, que vamos agir diretamente sobre o clima. Mas nós vamos, com o princípio da participação, fazer com que os governos que devem nos representar tomem atitudes”, finaliza o advogado Leme Machado.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895