A dor da dúvida

A dor da dúvida

Desaparecimentos causam sofrimento em amigos e familiares e Polícia enfrenta desafios na investigação

Por
Giullia Piaia

Desde o último encontro entre Bruna Geraldo Galle e sua mãe, já se passaram 986 dias. Foi um dia comum, mas que Maria de Fátima Geraldo não esquece. “Ela queria morar perto de mim, na Restinga. Veio me encontrar para vermos a casa que eu iria alugar para ela”, conta a diarista. Mas a proprietária acabou não aparecendo para mostrar a casa. “A Bruna ficou muito triste, porque ela já queria ficar ali. Ela me disse que se a mulher trouxesse a chave, ela dormiria até no chão. Não sei se ela já sabia que iria acontecer algo com ela”, diz. Bruna, que morava na zona Norte de Porto Alegre, ficou de voltar dois dias depois para, então, visitar a casa. Contudo, quando chegou o dia, disse à mãe que estava esperando o pagamento de uma faxina que tinha feito com uma amiga e por isso não iria. “Por volta das 22h30min, ela me ligou e a gente conversou muito, ela me disse ‘eu te amo, minha velha, te agradeço por tudo’.”

Na manhã seguinte, em 2 de abril de 2020, Fátima viu na tela do celular uma notificação de ligação não atendida. Era do número da amiga de Bruna e tinha sido feita por volta da 1h30min. “Eu vi aquela ligação, que seria provavelmente da Bruna, e pensei o que poderia ter acontecido, já que ela nunca me ligava de madrugada. Comecei a ligar para ela, liguei o dia inteiro e nada”, relata. Fátima não teve mais nenhuma informação sobre o paradeiro da filha. “Já faz três anos, mas cada vez que eu toco nesta situação, que eu tenho que falar sobre, que a delegacia me liga, eu acabo revivendo tudo aquilo que vivi no início, por que até hoje não teve solução”, diz Fátima, com a angústia presa na garganta. “Eu investiguei o que eu pude, fiz tudo que eu pude para ajudar a Polícia, mas não encontrei. Ninguém está preparado para uma perda, mas essa eu senti que dói mais, porque me tiraram meu direito de mãe.”

Os cinco filhos de Bruna, com idades entre 11 e 4 anos, moram com a avó. “Eu preciso descobrir o que aconteceu, tenho que estar preparada para falar com eles [os netos] quando eu souber a notícia, mas eu não me sinto preparada. Eu tenho medo, porque eu não quero ouvir que encontraram ela jogada, de qualquer jeito. Para mim, o maior presente será se ela estiver viva.”

O paradeiro de Bruna Geraldo Galle é desconhecido desde abril de 2020. Foto: Arquivo pessoal / Divulgação / CP

Esforço e frustração: filha busca por mãe desaparecida desde 15 de setembro

Fazia duas semanas que Elizabeth da Silva Dornelles havia se mudado para a casa da filha Ana Flávia de Lemos, no bairro Humaitá da capital gaúcha, e apenas dois dias que havia começado um tratamento com antidepressivos. Elizabeth estava morando com a filha e o genro, Fabian Teixeira, justamente por conta do estado depressivo em que se encontrava. Ela não queria mais ficar sozinha em casa. Durante esses 15 dias, já havia praticamente definido uma rotina, que sempre contava com uma volta no condomínio para caminhar ou fumar um cigarro. E era isso que Ana e Fabian imaginavam que ela estava fazendo no dia 15 de setembro deste ano. “Até umas 17h para nós estava normal, só que depois a gente começou a se preocupar, porque ela não é acostumada a ficar tanto tempo fora de casa”, relembra a filha da idosa. Moradora do bairro há 40 anos, Elizabeth é conhecida por muita gente. “Em um primeiro momento, até pensei que ela poderia estar na casa de uma amiga, que foi tomar um café, um chá, conversar”, diz a filha.

Com o cair da noite, Ana começou a contatar os primos, tentando descobrir o paradeiro da mãe. Elizabeth não tem telefone celular. Ana também perguntou aos vizinhos no condomínio, mas ninguém sabia onde estava a aposentada. O casal decidiu ampliar a busca aos hospitais, perguntando se alguém havia dado entrada com o nome de Elizabeth ou sem identificação, visto que a mãe de Ana havia saído sem os documentos. Tentando manter a calma, o casal ainda contava com a possibilidade de a idosa estar na casa de algum amigo e resolveu esperar até o meio-dia do dia seguinte, antes de alertar o resto da família e as autoridades.

Para descrever as roupas que a mãe usava à Polícia Civil, Ana conseguiu as imagens da câmera de segurança do condomínio. Elas mostravam Elizabeth saindo pelos portões laterais da propriedade. “Demorou um tempão para conseguir registrar a ocorrência na delegacia porque o sistema estava oscilando. Depois, eu e minha cunhada fomos para o Centro e ficamos circulando”, conta Ana. “Também começamos a divulgar nas redes sociais”, completa Fabian.

Ana Flávia e Fabian vêm tentando várias formas de conseguir informações sobre Elizabeth. Foto: Alina Souza

Já foram milhares de panfletos com fotos de Elizabeth impressos, anúncios de “desaparecida” pagos em redes sociais, carro de som com pedido por informações contratado, pedidos de divulgação na imprensa e muitas horas rodando a cidade em busca de pistas sobre a localização da aposentada. Além das câmeras do condomínio, Ana e Fabian conseguiram imagens de comércios, como mercados e bares, que mostram um pedaço do trajeto da idosa. “Nesse meio tempo, a gente tentou as câmeras públicas, que foi uma coisa que não nos ajudou na verdade. Eram sujas e muitas não filmavam o que precisávamos”, lamenta Fabian. A última imagem recuperada pela família mostra Elizabeth indo em direção à Nova Ponte do Guaíba, em direção às ilhas. “Para nós seria essencial as imagens das câmeras que têm ali no meio da ponte. Mas não nos concederam acesso, apenas nos disseram que a câmera não filmou ela, pois estaria apontada para outro lado.”

Ao perceber que a mãe poderia estar no arquipélago, Ana organizou uma varredura das ilhas, até Eldorado do Sul, com amigos e familiares. Seis carros participaram da busca. Na semana subsequente ao desaparecimento, Fabian rodou mais de 1.500 km de carro à procura de dona Beth. Mas apenas dúvidas surgiram da busca. O casal se pergunta se haveria uma motivação para a saída da aposentada — que, além dos documentos, deixou óculos e dinheiro em casa, levando apenas uma garrafa d’água —, o que ela teria ido fazer na região das ilhas, se ficou ali, se pegou carona para outro lugar. São vários os cenários e possibilidades que surgem na cabeça de Ana e Fabian.

“Eu não acho que ela tenha cometido bobagem com a vida dela, porque ela gostava da vida, gostava das pessoas. Tenho esperança que ela esteja com vida, porém talvez esteja com medo de voltar”, imagina Ana. A filha única sempre se preparou para o momento que precisaria cuidar da mãe. “Chega uma hora que o jogo vira e a gente que tem que cuidar dos pais, principalmente em questões ligadas à saúde, acompanhar ao hospital e tal. Para isso eu estava preparada. Mas a situação que estamos vivendo jamais tinha me passado pela cabeça.”

Elizabeth saiu de casa sem óculos, sem documento e sem dinheiro. Foto: Arquivo pessoal / Divulgação / CP

Quem desaparece no RS?

Entre janeiro de 2017 e maio de 2022, foram registrados 42.968 casos de desaparecimento, sendo 19.829 de menores de idade, junto à Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Uma média de mais de 21 desaparecimentos por dia. De acordo com dados da PC, a média de idade dos desaparecidos foi de 27 anos. Homens desapareceram com mais frequência: correspondem a 57,37% dos casos.

Pouco mais de 24% de todos os registros foram feitos na capital do Estado, mais de 10 mil ocorrências. Apenas em 2021, 1.430 desaparecimentos foram informados à PC em Porto Alegre. Foram 95 casos por 100 mil habitantes. Em comparação, foram 269 desaparecimentos em Caxias do Sul, segunda maior cidade do Estado, no mesmo período — 51,6 casos a cada 100 mil habitantes. Já em Canoas, terceira colocada em número de habitantes no RS, a taxa é de 71 desaparecimentos por 100 mil habitantes. Índice mais alto que o de Caxias, mas ainda assim menor que o de Porto Alegre.

Desafios da delegacia pioneira

Em março do ano passado, foi inaugurada a primeira Delegacia de Investigação de Pessoas Desaparecidas (DIPD) do Rio Grande do Sul. Com atuação sobre Porto Alegre, é responsável pelos casos de desaparecimento de maiores de idade. O objetivo da instalação da nova delegacia é canalizar o grande número de desaparecimentos registrados na capital gaúcha, que antes ficavam a cargo da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Seis policiais trabalham sob a chefia da delegada Caroline Machado, que assumiu o cargo em maio deste ano. Antes da chegada de Caroline, a DIPD não contava com um delegado titular e era atendida pela delegada da 2ª DHPP. Ao se instalar, Caroline percebeu que melhorias e a implantação de novos fluxos de comunicação eram necessários para o bom funcionamento da delegacia. “Desaparecimentos, principalmente no caso de maiores de idade, não envolvem só questões de polícia. Na realidade, poucos são os casos que efetivamente envolvem algum crime”, coloca a delegada.

A DIPD está buscando unir esforços junto a órgãos externos, como a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da prefeitura, responsável pelo atendimento de populações vulneráveis, como a de pessoas em situações de rua, e a Secretaria de Saúde, que tem os dados de quem acessa serviços em hospitais e postos de saúde. “A grande maioria sai de casa por uma questão de drogadição, questão de saúde mental, questão de brigas com familiares, de alcoolismo. Então não é uma questão de Polícia, é uma questão, realmente, de saúde mental, de saúde em si”, explica Caroline. Quando um desaparecido dá entrada em um hospital, a delegacia só fica sabendo ao fazer contato direto com os profissionais de saúde — não há nenhum mecanismo que informe o paradeiro da pessoa buscada se não for iniciado pela PC. A intenção da delegada é, de alguma forma, melhorar a integração entre os sistemas da PC e dos demais serviços. “Infelizmente, os sistemas internos não se conversam. Muitas vezes acontece de termos um corpo de outro estado e eles não conseguem localizar”, lamenta a delegada.

São muitos os planos da nova titular da DIPD. Além da Fasc e hospitais, Caroline também quer formalizar convênios com a Guarda Municipal (GM), com quem a delegacia já faz trocas por meio de um grupo de WhatsApp, em que são encaminhadas as fotografias dos desaparecidos, e com a Trensurb, para difusão de informações nas mídias dentro dos trens e nas estações. “São formas de difundir ainda mais e, possivelmente, localizar”, justifica. Mas não são todos os casos que são divulgados. É obrigação da PC investigar todos as ocorrências registradas, porém, por se tratarem de maiores de idade, é preciso respeitar a vontade dos que somem. “Desaparecer não é crime”, pontua Caroline. Fotos são divulgadas apenas com autorização da família. “Tem gente que sai, fica um final de semana fora e volta. A gente tem todo um cuidado, porque a pessoa, em tese, não quer ter a vida dela revisada”, argumenta. Assim, a investigação ainda é feita, mas sem a exposição da figura do desaparecido ao público. A grande maioria dos casos são desaparecimentos “voluntários”. “É voluntário relativo, eu diria. Porque quase sempre tem alguma coisa”, analisa, se referindo às questões de drogadição e alcoolismo, por exemplo.

A DIPD também pretende retomar conversas com a prefeitura para a criação de um núcleo para o encaminhamento dessas pessoas. “A família também precisa se tratar, é uma situação que adoece a família inteira. É preciso um encaminhamento para saber como agir com esse indivíduo”, afirma Caroline, a respeito de casos de dependentes químicos. São muitos planos, mas, com um efetivo pequeno, é um desafio realizá-los. A cada seis horas, uma pessoa é registrada como desaparecida em Porto Alegre. “Somos seis policiais e eu, delegada. É uma demanda de trabalho muito grande e o trabalho é bem intenso”, ressalta. De acordo com Caroline, a maioria dos casos são, realmente, de pessoas que acabam voltando para casa por conta própria. “Mas são aqueles 10% que acabam virando casos mais complicados, que acabam dando um trabalho bem maior e, por vezes, com um final não tão bom quanto a gente gostaria”, comenta.

Apesar do grande número de casos diários, o problema ainda não chama muita atenção do público brasileiro. No Rio Grande do Sul, não há nenhuma ONG que trabalhe sobre o tema e no resto do Brasil são poucas. O Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas ainda está em construção, fora de funcionamento, tendo sido instaurado em lei apenas em 2019. “A gente precisa de apoio da comunidade. Não é um problema que chama a atenção. Se tu não tens um desaparecido na família, tu não dá bola para isso”, observa. Atualmente, a equipe da DIPD trabalha em 18 inquéritos policiais de pessoas desaparecidas há um tempo considerável. “Alguns temos praticamente certeza de que são homicídios, só não localizamos o corpo ainda.”

Tecnologia como aliada da identificação

O IGP utiliza tecnologia na reconstituição de imagens de pessoas desaparecidas. Foto: Mauro Schaefer

Se a falta de comunicação parece ser o principal algoz na busca por desaparecidos, a tecnologia se faz aliada e tenta levar a procura adiante. Apesar de polêmicas, câmeras que realizam reconhecimento facial, por meio de inteligência artificial, buscam pelos rostos dos desaparecidos no centro de Porto Alegre. O sistema de cerca de 20 câmeras do Departamento de Comando e Controle Integrado é abastecido com fotos fornecidas pelas famílias dos desaparecidos. Quando há um match de pelo menos 75% entre imagem captada e foto do banco de imagens, um operador humano também verifica a imagem, que posteriormente passa por outras análises. “Essas câmeras estão em expansão, devem colocar novas em outros bairros”, comenta Caroline.

Ao Instituto-Geral de Perícias do Rio Grande do Sul (IGP-RS), órgão autônomo vinculado à Secretaria de Segurança Pública (SSP-RS), compete um papel especial nas investigações de pessoas desaparecidas. Tão importante quanto a busca de pessoas ainda em vida, a identificação de corpos localizados pela polícia pode ser o desfecho esperado por famílias que há anos esperam pela volta de seus queridos, ainda que não seja alegre.

Existem três métodos utilizados pelo IGP na identificação de indivíduo: a papiloscopia, a odontologia legal e a genética forense. A preferência é sempre dada ao primeiro método, que nada mais é que a coleta de impressões digitais. Nos casos em que a identificação pela papiloscopia não for possível, como no caso de corpos carbonizados, ossadas ou estado avançado de decomposição, parte-se para o segundo método. A identificação pela arcada dentária é feita por meio da comparação do falecido com registros dentários de quando a pessoa estava viva. Para isso, a colaboração de familiares na localização destes registros e exames feitos no dentista é necessária. São úteis fichas dentárias, radiografias dentárias, de coluna ou de crânio, moldes, próteses e aparelhos dentários, e fotografias do sorriso. Apenas quando não é possível a identificação pela odontologia legal é feita a identificação pelo DNA. “Mais de 90% das identificações feitas pelo nosso Departamento Médico-Legal (DML) são por meio da papiloscopia”, valoriza Gustavo Lucena Kortmann, perito criminal e chefe da Divisão de Genética Forense do IGP. Isso se deve ao fato de ser uma forma de identificação barata e rápida, visto que, no Brasil, o registro civil se dá por meio das digitais.

Em casos específicos, onde não é possível usar a papiloscopia e nem ter acesso a registros dentários ou DNA de familiares, as ossadas são armazenadas no DML à espera de informações que levem à identificação. Em alguns casos, os peritos podem criar novas técnicas para realizar seus trabalhos, sempre usando a tecnologia a seu favor. Em caso que chegou a ser publicado como artigo no Journal of Forensic Sciences, em 2020, peritos utilizaram técnicas de processamento 3D para identificar um jovem desaparecido na região central do Estado desde 2016 e, finalmente, entregá-lo à família.

Usando o crânio e o seu perfil antropológico — que permite estimar sexo, idade e ancestralidade —, a face do rapaz foi reconstruída digitalmente, com o uso de softwares livres. A imagem criada foi, então, comparada com as fotos, cadastradas no banco de desaparecidos da SSP-RS da região de onde foi encontrada a ossada. “A imagem que ela tinha projetado batia com a imagem de um rapaz desaparecido. Foram atrás da família e fizeram o DNA. E, realmente, aquilo que ela tinha projetado batia, era o rapaz”, conta o perito criminal Luciano Beux, se referindo à colega Rosane Baldasso.

Outro trabalho realizado recentemente pelo IGP se chama “aproximação facial forense”. Por meio desta técnica, o instituto projetou, em julho deste ano, como estaria Daniel Barbosa Simões, desaparecido em 2006, quando tinha 18 anos, em Pelotas, no sul do RS. Usando fotos dele criança, fotos de quando desapareceu e fotos dos pais, foi criada uma nova imagem, projetando como ele estaria hoje, aos 34 anos. “É uma projeção, não é exatamente como a pessoa vai ser. Também não é a mesma coisa que esses filtros de aplicativo de celular, que são para entretenimento. O que nós fazemos é com base científica, há toda uma análise morfológica”, explica Beux. A imagem gerada é usada para reconhecimento. “Pode aparecer alguém que diga ‘parece o fulano!’ e aí vai ser feita alguma identificação oficial.”

A imagem do Daniel mais velho foi criada utilizando Photoshop e um banco de referência facial humana forense, o mesmo usado para a composição de retratos falados. “Temos as características da pessoa e vamos montando a imagem conforme a análise que foi feita”, esclarece Beux.

DNA: preciso, porém caro

Banco de amostras inclui DNA de pessoas vivas e mortas. Foto: Alina Souza

Uma minoria dos casos de desaparecimento é resolvida por meio de testes de DNA. O método é caro e complexo, além de ser mais demorado que os outros, levando, em média, três semanas para ser concluído. Segundo o chefe da divisão, existem diferentes situações para a demanda de identificação por DNA. “A menos comum é quando tem uma família para comparar com o corpo”, elenca Kortmann. Isso pode acontecer, por exemplo, em casos de sequestro por facções criminosas. A família presencia o sequestro e dias depois surge um corpo com as mesmas roupas, mas em um estado em que já não é mais possível a identificação por outros meios. Uma segunda possibilidade é a descoberta acidental de uma ossada. “Vai fazer uma obra e, ao revirar a terra, aparece um crânio. Neste caso, não vai ter uma família esperando”, pontua.

Restos mortais não identificados são encaminhados para o DML, onde passam por antropologia forense e têm uma amostra de DNA coletada. Essa amostra é inserida no Banco de Perfis Genéticos de Pessoas Desaparecidas e ali ficará até a sua identificação. Quem busca um familiar desaparecido também pode ter seu material genético inserido no banco e, assim, descobrir se seu ente querido já foi encontrado ou, então, caso venha a ser encontrado no futuro, já haverá a identificação com base no material doado anteriormente. O material genético (sangue ou saliva) deve ser fornecido por uma pessoa com vínculo biológico de primeiro grau, ou seja, pai, mãe, irmãos e, preferencialmente, filhos. Caso não haja familiares disponíveis, escovas de dentes, óculos e roupas íntimas da pessoa desaparecida podem ser usados.

Para doar material genético, basta registrar o boletim de ocorrência de desaparecimento e solicitar um ofício de encaminhamento junto à PC. A coleta de material é feita nos Postos Médico-Legais ou, em Porto Alegre, na própria Divisão de Genética Forense. Semanalmente, é realizado o cruzamento dos dados do banco, buscando matches que indiquem a identificação dos corpos. “Gostamos de salientar aos familiares que não precisa ter medo de doar, pois o material não será usado para fins de análise criminal e irá apenas para o banco de desaparecidos”, garante Kortmann. A coleta do material também é simples. “É passado um cotonete na parte interna da bochecha para a coleta da saliva e para o sangue é um furinho no dedo, como em um exame de diabetes”, explica a perita criminal Vivian Altmann. Feita a extração do DNA, algumas regiões do DNA são amplificadas, criando um perfil genético. “Este perfil é colocado em um software que faz um cálculo estatístico de vínculo genético, diz qual a probabilidade de um indivíduo ser filho do outro, por exemplo”, esclarece. O banco de perfis genéticos, que é nacional, começou a ser usado em 2014 no RS e, desde então, foram identificadas 78 pessoas por meio dele, colocando o Estado como o que mais localizou pessoas por meio dessa tecnologia.

“O banco não é só de pessoas mortas. Temos a possibilidade de coletar o DNA de pessoas desaparecidas vivas, mas é algo que ainda não se concretizou”, comenta Kortmann. “São aquelas pessoas que não conhecem sua identidade, estão perdidas, em hospitais ou albergues, pessoas em coma”, complementa Vivian. Já foram feitas reuniões com diferentes autoridades para viabilizar o projeto, que segue sem previsão de implantação. “Existem alguns entraves. A assistência social tem medo que o público-alvo confunda o IGP com a polícia, se assuste e deixe de procurar os serviços como os albergues”, reconhece Kortmann. Outra questão é que muitas dessas pessoas não querem ser encontradas, o que também é seu direito.

Falta apoio psicológico para as famílias

Com a Polícia sobrecarregada, quem está à procura de um familiar ou amigo se volta ao apoio de outros na mesma situação. Grupos de abrangência nacional e regional como “Pessoas Desaparecidas”, “Portal Desaparecidos” e “Procura-se” contam com mais de 100 mil membros no Facebook. Alguns com dezenas de publicações diárias, com histórias e fotos de pessoas que desapareceram durante a semana ou, até mesmo, 20 anos atrás. São frequentes relatos de famílias desesperadas em busca dos filhos, pais e avós. Nos comentários, mensagens de força. Relatos de encontros também são postados, mas são menos frequentes. A falta de um local de registro centralizado para todos os desaparecimentos é outra questão que leva ao surgimento destes grupos.

A inexistência de serviços de apoio psicológico também deixa as famílias desamparadas. “Acho que deveria ter. Preciso me controlar muito porque trabalho muito, além de ter as crianças, e isso acaba tirando daquilo. Mas se a pessoa não tem, ela enlouquece”, opina Fátima, mãe da Bruna. “Isso mexe muito com o emocional. Vivo com a Bruna na cabeça, acordo e vou dormir pensando nela. Eu me fortaleço nas crianças, tenho que trabalhar por eles, que seguir em frente por eles.”

Ana Flávia mostra pertences da mãe que ficaram em seu apartamento. Foto: Alina Souza

O que fazer em casos de desaparecimento

A primeira atitude que deve ser tomada quando um familiar ou amigo está desaparecido é ir até a Delegacia de Polícia mais próxima e registrar boletim de ocorrência, levando o máximo de informações possíveis sobre o desaparecido. Não é necessário aguardar 24 horas. “Isso é um mito. As pessoas acabam esperando, às vezes, 24 horas para registrar e esse tempo é muito importante para nós”, alerta a delegada Caroline. O registro pode ser feito em qualquer delegacia, inclusive on-line (www.delegaciaonline.rs.gov.br).

Ao mesmo tempo que o registro de desaparecimento deve ser feito de forma ágil, o registro de localização também deve seguir essa lógica. “A gente acaba não sabendo que foi localizada e acaba gastando energia ou investindo em ocorrências já resolvidas, deixando casos potencialmente mais graves de lado. Faz a ocorrência. Se ela chegar duas ou três horas depois, vai lá e registra a localização”, pede Caroline.

Outro recurso disponível aos que procuram alguém é o Sinal Desaparecidos, da PRF. Com a inserção no sistema, um alerta é disparado a todos os policiais rodoviários federais de plantão em um raio de 500 quilômetros do ocorrido. O registro no Sinal Desaparecidos não substitui o boletim de ocorrência.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895