Acidente com Césio-137 completa 35 anos

Acidente com Césio-137 completa 35 anos

Em 1987, o mais grave caso de contaminação por radiação do Brasil, em Goiás, deixou quatro mortos e 28 afetados pela Síndrome Aguda da Radiação

Por
Giullia Piaia

Na tarde de 29 de setembro de 1987, uma ligação foi feita para a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), no Rio de Janeiro. Quem atendeu foi José de Júlio Rozental, então diretor do Departamento de Instalações Nucleares. O telefonema vinha de Goiânia (GO) e comunicava que havia sido encontrada alta contaminação radioativa em áreas da cidade.

Cerca de duas semanas antes, no dia 13, os catadores de papel Roberto Alves, de 22 anos, e Wagner Pereira, de 19, haviam entrado em um prédio abandonado e parcialmente demolido, onde, até dois anos antes, funcionara o Instituto Goiano de Radioterapia. A organização transferiu-se para outro prédio, deixando para trás um equipamento de radioterapia, que chamou a atenção dos jovens. Eles levaram partes da máquina para casa, com o intuito de vender o material como sucata. 

Sem saber exatamente com o que estavam lidando, Alves e Pereira, com marteladas, no quintal de casa, acabaram por abrir uma cápsula de chumbo de 3,6 cm de diâmetro por 3,0 cm de altura que estava acoplada ao equipamento e continha 19 gramas de cloreto de Césio-137, um elemento radioativo usado como fonte da radioterapia. Neste momento, fragmentos do elemento, em forma de pó, foram liberados no ambiente. Não demorou muito para que os catadores sentissem os efeitos da radiação. Diarreia e vômito foram os primeiros sintomas, apenas horas depois da contaminação. Dois dias depois, se dirigiram a um hospital com bolhas nas mãos e nos braços. Os médicos pensaram que eles estavam com alguma alergia ou doença tropical.

No dia 19/09, a cápsula foi vendida ao ferro-velho de Devair Alves Ferreira, 36 anos. Ao perceber que o pó de césio emitia uma luz azul no escuro, Devair ficou encantado. Ele chamou familiares e amigos para ver o brilho e distribuiu grãos de césio aos mais próximos. Isso aconteceu durante nove dias, nos quais partes da máquina também foram vendidas a dois outros ferros-velhos. 

Vista áerea do ferro-velho de Devair, onde foi violada a cápsula do Césio-137. Foto: Lorisvaldo de Paula / O Popular / SES-GO / CP

Um dos presenteados foi o irmão de Devair, Ivo Alves Ferreira, que levou um pouco do pó embrulhado em um papel para mostrar à família. Sua filha, Leide, de 6 anos, acabaria se tornando a primeira vítima fatal do Césio-137. A menina brincou com o pó e, com as mãos ainda contaminadas, comeu um ovo, ingerindo o elemento. Outro irmão, Odesson Alves Ferreira, também entrou em contato com o pó, o colocando na palma da mão, mas preferiu não o levar para casa. 

A cápsula seguia na sala da casa de Devair e foi sua esposa, Maria Gabriela Ferreira, de 38 anos, que sentia os efeitos da radiação, quem suspeitou que a causa do mal-estar fosse a peça, visto que todos que tiveram contato com o brilho azul também passaram a ter problemas de saúde. No dia 28, com a ajuda de um dos empregados do ferro-velho, Maria Gabriela levou de ônibus a cápsula de Césio-137 até a vigilância sanitária. O saco contendo o elemento radioativo foi deixado em cima de uma mesa até o dia seguinte, e depois transferido para uma cadeira no pátio. Maria Gabriela e o empregado foram encaminhados ao Centro de Informações Toxicológicas, onde um médico desconfiou que as queimaduras poderiam ter sido causadas por radiação. Um físico foi acionado para medir o nível de radioatividade da cápsula. Ele confirmou a alta contaminação não apenas na vigilância sanitária, mas em várias outras localidades de Goiânia. 

Ao receber a notícia, no dia 29, Rozental consultou os arquivos da CNEN e concluiu que a provável fonte da contaminação era a do equipamento abandonado do Instituto Goiano de Radioterapia. Uma equipe da CNEN chegou na cidade no dia seguinte, iniciando uma operação de emergência envolvendo vários outros órgãos e instituições. 

A repórter goiana Cileide Alves estava a caminho de Brasília para acompanhar uma visita do governador de Goiás à época, Henrique Santillo, quando teve que dar meia volta. O governador havia cancelado a visita. “Eles [do canal de televisão] me disseram ‘pode voltar que o governador não vai mais, aconteceu alguma coisa e ele vai ficar por aqui’. Quando voltei, fiquei sabendo que tinha uma contaminação, que eles não sabiam do que se tratava, estavam investigando, e, por conta disso, o governador tinha cancelado a agenda”, relembra.

“À noite, chegou a informação de que era um material radioativo e que, portanto, as pessoas que tiveram contato, as casas e os objetos todos seriam isolados”, conta Cileide. Ela se dirigiu a um estádio na região central de Goiânia, onde se deparou com uma fila de centenas de pessoas que aguardavam para serem testadas com um contador Geiger - aparelho que mede o nível de radiação no corpo. A CNEN estava direcionando os mais contaminados para tratamento adequado. “Eles pegaram as famílias que efetivamente tinham tido contato direto com pó de césio e, essas, eles isolaram, assim como os locais por onde o pó passou.” No total, de acordo com a Secretaria de Saúde de Goiás (SES-GO), foram monitoradas 112.800 pessoas, das quais 249 apresentaram significativa contaminação interna e/ou externa, sendo que em 120 a contaminação era apenas em roupas e calçados e elas foram liberadas após a descontaminação. As outras 129 passaram a receber acompanhamento médico regular. Destas, 79 com contaminação externa receberam tratamento ambulatorial. Os outros 50 radioacidentados sofriam com contaminação interna. Trinta foram assistidos em albergues em semi-isolamento e 20 foram encaminhados ao Hospital Geral de Goiânia. Destes últimos, 14 em estado grave foram transferidos para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro. Banhos mornos com sabão neutro e vinagre, para facilitar a remoção da substância radioativa, foram a principal forma de descontaminação utilizada nos hospitais. Contra a contaminação interna, era prescrito o uso de Azul da Prússia e diuréticos.

Cerca de um mês depois, o césio fez quatro vítimas fatais. Leide das Neves, filha de Ivo, morreu em 23 de outubro de 1987. Foi a vítima fatal com a maior dose de radiação no corpo. Leide, que se tornou símbolo da tragédia, perdeu os cabelos, teve danos nos pulmões e hemorragia interna, causada pela Síndrome Aguda da Radiação. No mesmo dia, Maria Gabriela, que levou a fonte de césio à Vigilância Sanitária, também faleceu. As duas foram enterradas no dia 26, em Goiânia, em caixões de chumbo de mais de 700kg, para evitar a propagação da radiação. O mesmo foi feito com os corpos de Israel Batista e Admilson Alves de Souza, funcionários de Devair que trabalharam na extração do chumbo da máquina de radioterapia. A SES-GO também aponta que oito pessoas desenvolveram a Síndrome Aguda da Radiação, 14 apresentaram falência de medula óssea e uma sofreu amputação do antebraço. No total, 28 pessoas desenvolveram a síndrome, em maior ou menor intensidade.

As vítimas foram enterradas em caixões de chumbo de mais de 700 quilos, para evitar a propagação da radiação. Foto: Oscar Sabetta / Reuters / CP Memória

Lixo radioativo e muitas dúvidas

Para evitar que a tragédia se propagasse ainda mais, não era suficiente descontaminar somente as vítimas. Foram identificados e isolados sete locais com maior índice de radioatividade e contaminação do ambiente. “Cheguei com o segundo grupo de pessoas que foi dar resposta ao acidente. Minha atuação foi na parte de descontaminação das áreas contaminadas e o acondicionamento dos materiais retirados destas áreas, colocação nas embalagens de rejeitos radioativos”, recorda o físico do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, Roberto Vicente. O acidente gerou 3,5 mil metros cúbicos de lixo radioativo, aproximadamente 6 mil toneladas. 

Cerca de duas semanas após a chegada do cientista a Goiânia, construções contaminadas começaram a ser demolidas e os resíduos recolhidos. Foram removidas grandes quantidades de solo, incluindo ruas. “Em alguns lugares, a contaminação do solo era tão intensa que a gente podia ficar somente alguns segundos no local. Não há dúvida de que remover o material era absolutamente imperativo.” Além disso, móveis, veículos e objetos pessoais de vítimas, como documentos, fotos, roupas, comida e, até mesmo, animais contaminados, foram classificados como rejeito. Todo o lixo radioativo foi acondicionado em contêineres concretados. A cadeira com o saco contendo Césio-137 foi concretada e isolada, considerada rejeito altamente radioativo.

Técnicos da Comissão de Energia Nuclear manipulam um dos animais contaminados com Césio-137, que foram sacrificados para evitar a propagação da contaminação. Foto: Luiz Novaes / Folha / Reuters / CP Memória

Quando a atividade radioativa é baixa o suficiente para não causar danos às pessoas, os objetos podem receber dispensa do controle regulatório. “Pouquíssima coisa acabou sendo tratada como material dispensado. Praticamente, recolhemos tudo, mesmo que tivesse uma pequena quantidade de Césio”, afirma o físico. “A gente decidiu fazer essa remoção mais por causa da população. Era pequena a chance de que eles entendessem que a gente deixou porque uma análise fria indica que poderia deixar. Então, optamos por usar não só o critério estritamente técnico, como um critério de tranquilização da população, para que não houvesse comoção, para que as pessoas realmente tivessem certeza de que elas estavam protegidas”, justifica.

Cileide, como repórter, acompanhou estes processos. “As casas tiveram que ser demolidas, os objetos que estavam dentro delas viraram lixo radioativo. A imprensa nacional e internacional estava em Goiânia porque o acidente radioativo mais recente que se conhecia tinha sido o de Chernobyl, na então União Soviética, hoje Ucrânia, que tinha acontecido um ano antes. Então, a memória que se tinha naquela época era muito trágica”, constata. Na capital goiana, o medo passou a tomar conta da população. “Era tudo muito novo, foi muito pesado. Eu mesma, quando chegava em casa, a minha família ficava preocupada que eu pudesse contaminar meu marido, meu filho de 3 anos. Eu também ficava preocupada, mas confiava nos técnicos. Eles diziam que não tinha riscos se tomássemos precauções. Usávamos equipamentos. Mas, ainda assim, ao chegar em casa, tomava banho e me enxaguava com vinagre.”

Uma situação nova e inesperada sempre vem acompanhada de desconhecimento. “Naquela altura eu já trabalhava há 14 anos com rejeitos radioativos, ou seja, era uma pessoa bastante experiente. No entanto, muitas coisas a gente não havia enfrentado antes. Frequentemente, não tínhamos certeza de como lidar. Tínhamos que enfrentar com coragem porque eram situações que, eu ao menos, não havia vivido”, explica Vicente. O físico considera que cometeu erros no que tange ao relacionamento com a população. Ele lembra de uma senhora que morava próximo de onde estava trabalhando na remoção dos rejeitos. “Ela veio conversar, queria informações, se sentir segura. No segundo dia, trouxe uma bandeja cheia de bolinhos que havia feito para nos oferecer.” Mas Vicente não aceitou a oferta. “Eu tinha vindo de São Paulo, não sei se era a água, mas estava com muita diarreia. Recusei delicadamente, mas não disse o porquê. E ela interpretou a minha recusa como se eu não quisesse comer porque era perto da área contaminada. Ela perdeu confiança na gente e foi embora”, lamenta.

O trabalho da imprensa também foi rodeado pela incompreensão. “A gente queria dar notícia verdadeira, mas não sabia exatamente qual era a notícia verdadeira. Acho que a gente errou muito na cobertura olhando, assim, retrospectivamente. Houve coisas que a gente deu muito destaque e que acabaram não sendo tão relevantes, acabavam criando mais pânico”, analisa Cileide. Mesmo 35 anos depois, ela ainda considera o acidente de Goiânia como a cobertura mais difícil de sua carreira. “A gente não tinha noção do que aquilo significava. A gente ouvia técnicos, físicos nucleares, químicos. Eles falavam todos em tese, com base no que tinham estudado, mas ninguém tinha experiência prática com um acidente como aquele. Então, falavam as coisas, mas a gente não sentia segurança. Havia um temor de que se estivesse escondendo a informação para evitar o pânico.”

O medo se estendeu para fora de Goiânia e até de Goiás. “Para piorar a situação, lembro que a Hebe Camargo fez um programa dizendo para não comprar produtos de Goiânia, que a cidade estava contaminada, isso criou um pânico nacional. As pessoas que saíam de Goiânia para outras cidades eram tratadas com preconceito, porque achavam que todo goianiense estava contaminado com césio”, lastima a jornalista

A cidade de Abadia de Goiás

Os rejeitos radioativos, após colocados nos contêineres, precisavam ser armazenados em um repositório seguro e não muito distante do local do acidente, para que não fosse necessário circular com o lixo. O local escolhido para a construção do depósito foi um distrito distante cerca de 20 quilômetros do centro de Goiânia, o que gerou protestos da população que morava no local. “Quando nós fomos escolher a área para fazer o depósito dos rejeitos foi um sufoco. O Santillo [Henrique Santillo, governador no ano do acidente] tinha um neto pequeno, eu também tinha um filho, os meninos eram da mesma idade e nós tivemos que nos mudar com nossas famílias para uma chácara perto do local para provar que não tinha absolutamente nenhum risco o fato dos rejeitos estarem lá”, disse Antônio Faleiros, então secretário de Saúde de Goiás, em uma entrevista de 2012.

Primeiramente armazenados em um depósito temporário, os primeiros rejeitos chegaram à localidade em 25 de outubro de 1987. Policiais acompanharam o transporte para conter manifestações populares. Foram alocados 4,2 mil tambores comuns de 200 litros, 1,3 mil caixas metálicas, oito recipientes de concreto e dez contêineres marítimos em um chão de concreto a céu aberto até a construção do depósito permanente. Em 1995, o distrito foi emancipado e passou a se chamar Abadia de Goiás. Na bandeira, foi inserido um trifólio, símbolo da radioatividade.

O depósito permanente, inaugurado em 1997, fica a cerca de 1 quilômetro do centro da cidade, junto ao Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste, criado em 1989, sob responsabilidade da CNEN, que executa o monitoramento dos rejeitos e o controle ambiental. Sobre o depósito foram colocadas camadas sucessivas de matérias próprias para drenagem dirigida, com a função de evitar o contato das águas da chuva com os rejeitos. Externamente, foi revestido com isolantes com base em resina e betume. O lixo radioativo deverá permanecer ali por 300 anos, quando perderá seu poder de radiação.

Os abadienses não foram os únicos a protestar. Em Goiânia, durante o enterro de Leide das Neves e Maria Gabriela Ferreira, os caixões foram recebidos com pedradas dos moradores. “Foi uma das cenas mais tristes que presenciei na minha vida. Nunca imaginei que as pessoas tivessem coragem de jogar pedra em caixão”, observa Cileide. Apesar da comoção, especialistas garantem que o depósito em Abadia de Goiás é seguro. “O motivo para medo não existe, porque o depósito está sujeito a todas as regras. Está sob intensa monitoração, a estrutura é bem-feita”, explica Frederico Genezini, físico do Ipen. O município recebe compensação financeira do governo federal para armazenar os rejeitos. 

Vizinhos do cemitério onde se enterram os corpos das vítimas da radiação jogam pedras nas forças de segurança. Foto: O Popular / Reuters / CP Memória

Consequências para as pessoas que sobreviveram

Em fevereiro de 1988, cinco meses após a tragédia, o governo de Goiás criou a Fundação Leide das Neves (FunLeide), com o objetivo de fornecer assistência médica e social e monitorar os efeitos da exposição à radiação ionizante dos radioacidentados. Os pacientes foram separados em grupos de monitoramento, de acordo com normas internacionais que consideram como critérios de classificação a gravidade das lesões cutâneas e a intensidade da contaminação interna e externa e que determinaram a metodologia dos protocolos de acompanhamento médico. O grupo 1 é composto por pessoas contaminadas direta e indiretamente pelo Césio-137 com medição acima de 50 rads. As pessoas com medição de até 50 rads ficaram no grupo 2. E no terceiro grupo, ficaram os funcionários do Estado de Goiás que participaram da operação de descontaminação. 

O césio emitia uma radiação ionizante com energia suficiente para arrancar elétrons. “O que acontece quando ela arranca o elétron de um átomo que está dentro de uma pessoa? Ela, na verdade, vai ionizar moléculas. Ela pode ionizar o DNA diretamente, quebrando a fita de DNA”, elucida Henrique Trombini, docente de física médica na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). “Outra forma, mais comum, é ela arrancar um dos elétrons da água. O nosso corpo é 70% preenchido de água, então, a gente ingere radicais livres e esses radicais livres conseguem danificar de forma indireta o DNA. Nosso organismo tem meios para se defender desse tipo de dano, que pode acontecer com fumantes de outras formas. Só que quando a gente ultrapassa uma quantidade de dano, que é quando estamos expostos a uma radiação, nosso organismo já não consegue mais vencer aquele dano.”

Em 1999, a FunLeide foi extinta e substituída pela Superintendência Leide das Neves Ferreira (Suleide). Em 2011, a superintendência foi desmembrada em Centro de Assistência aos Radioacidentados (C.A.RA.) e Centro de Excelência em Ensino, Pesquisa e Projetos Leide das Neves Ferreira (CEEPP-LNF). O C.A.R.A é hoje responsável pelo atendimento aos radioacidentados, o que, de acordo com a Associação das Vítimas do Césio-137 (AVCésio) não acontece sempre.

Os benefícios pecuniários dos radioacidentados estão assegurados por leis estaduais de 1989 e de 2002 e por lei federal de 1996, as quais concederam pensão vitalícia às pessoas dos grupos 1 e 2. Em 2008, uma lei incluiu o grupo 3 no rol de beneficiários. Atualmente, 486 indivíduos recebem pensões estaduais, 250 são beneficiários das pensões federais e 116 recebem, cumulativamente, os dois benefícios, dentre eles Sueli Lina de Moraes Silva, classificada como parte do grupo 2. Entretanto, são várias as disputas judiciais dos que demandam reconhecimento e recebimento de pensão e assistência médica. “Não estão cuidando das vítimas”, denuncia Sueli, presidente AVCésio. Em 1987, ela tinha 29 anos e era vizinha de Devair, dono do ferro-velho que comprou a cápsula de césio. Ela passou por descontaminação durante três meses, em uma unidade ambulatorial.

Odesson perdeu parte das mãos, mas sobreviveu ao acidente. Na foto, na janela do hospital, junto ao sobrinho Lucimar, irmão de Leide. Foto: Oscar Sabetta / Reuters / CP Memória

Alguns estudos realizados posteriormente na região concluíram que não há taxas elevadas de câncer ou outras doenças ligadas à radiação entre os radioacidentados. Informação que é contestada pela associação de vítimas, que afirma que poucas investigações foram realizadas e as que foram desprezaram dados fornecidos pela AVCésio. 
Odesson, que colocou o césio na mão, mas não o levou para casa, ainda está vivo. Foi por anos presidente da AVCésio e é um dos que reivindica que mais pesquisas sejam feitas. Ele perdeu os dedos e a pele do local em que encostou no elemento radioativo. 

Desde a tragédia, além das 4 vítimas da contaminação direta, outras 12 pessoas morreram. Entre elas, Devair, que após o acidente se tornou depressivo e dependente de álcool, e faleceu de cirrose hepática em 1994, e Ivo, seu irmão, que, também em depressão passou a fumar seis maços de cigarros por dia, desenvolvendo enfisema pulmonar. De acordo com o governo federal e de Goiás, não há relação destas mortes com a radiação.

Um estudo de 2013 analisou a qualidade de vida dos indivíduos expostos ao Césio-137 e concluiu que “os radioacidentados sofrem considerável impacto na qualidade de vida, com persistência de problemas psicossociais, especialmente para aqueles com mais de 41 anos”. De acordo com os pesquisadores, isso “corrobora estudos que consideram o impacto na saúde mental como o maior problema de saúde pública desencadeado por acidentes dessa natureza e que, muitas vezes, esses transtornos vêm acompanhado de um grande número de queixas somáticas inespecíficas. Nesse aspecto, é reconhecido pelo corpo clínico do C.A.R.A. que desde a ocorrência do acidente radioativo com o Césio-137 foi dada ênfase aos aspectos físicos das vítimas do acidente, em detrimento ao gerenciamento dos problemas sociais e psicológicos”.

De quem foi a culpa?

Manifestante protesta no Rio de Janeiro, em outubro de 1987, sob uma faixa escrito “Goianobyl”. Foto: Vanderlei Almeida / Reuters / CP Memória

“Foi um acidente de falta de responsabilidade. É algo que nunca poderia ter acontecido, ter deixado o equipamento, que é um cabeçote com o material radioativo, dentro de um prédio abandonado. Isso era uma tragédia iminente. Você não sabia a data que iria acontecer, mas com certeza iria acontecer”, diz o físico Henrique Trombini, da UFCSPA. O então secretário de Saúde de Goiás, Antônio Faleiros, também pensava assim e, em depoimento de 2012, afirmou sobre as vítimas: “São pessoas humildes, trabalhadoras braçais, com pouco estudo e que, por não saberem, não terem conhecimento dos riscos, acabaram causando um acidente dessa magnitude. Eles sofreram na própria pele os desdobramentos de uma irresponsabilidade do poder público que não poderia, jamais, deixar abandonado um aparelho com um conteúdo tão perigoso quanto aquele.”

Foram indiciados por homicídio culposo e lesão corporal culposa e condenados a 3 anos e 2 meses de prisão em regime aberto: Flamarion Barbosa Goulart, físico que prestava consultoria para o Instituto Goiano de Radioterapia (IGR); Carlos de Figueiredo Bezerril, médico responsável pelo IGR; Criseide Castro Dourado, médica responsável pelo IGR; Orlando Alves Teixeira, médico responsável pelo IGR; e Amaurillo Monteiro de Oliveira, dono do prédio. A pena foi transformada em prestação de serviços comunitários. Em 1999, a ação penal foi arquivada.

Chernobyl

O acidente nuclear de Chernobyl havia acontecido apenas um ano antes do acidente com Césio-137 e permeava a imaginação popular. Os acidentes, entretanto, foram bem diferentes. O problema em Chernobyl aconteceu dentro da usina de energia nuclear da cidade, com a falha de um reator, que explodiu, liberando uma nuvem radioativa que contaminou humanos, animais, plantas, solo e ar. Mais de 500 mil pessoas já trabalharam na descontaminação do local, que deve durar até 2065. O número total de vítimas é, até hoje, uma questão controversa. A ONU estima que cerca de 100 tenham morrido. A catástrofe de Chernobyl é considerada o acidente nuclear mais desastroso da história. Foi classificado como um evento de nível 7 (a classificação máxima) na Escala Internacional de Acidentes Nucleares. Goiânia ficou no nível 5 e é considerado o maior acidente radiológico da história.

O aprendizado depois do acidente

Menina brinca em uma área isolada em Goiânia. Foto: O Popular / Reuters / CP Memória

O acidente radiológico de Goiânia serviu, sobretudo, como um alerta para as autoridades responsáveis pela fiscalização. “A fiscalização antes era muito precária, ela foi evoluindo a partir do acidente. Foram inventariadas todas as fontes que existiam no Brasil. A CNEN tem que autorizar a importação de novas fontes e a movimentação das já existentes. A regulamentação ficou muito intensa”, pondera Genezini, do Ipen. 

Além do aumento na fiscalização, a tecnologia também evoluiu e os aparelhos de radioterapia ficaram mais modernos. “Antes, uma fonte radioativa ficava em uma blindagem que tinha um obturador que, ao abrir, emitia um feixe de radiação no paciente”, explica o Genezini. Após receber a dose recomendada de radiação, o obturador (espécie de abertura) era fechado novamente, blindando o elemento radioativo. Atualmente, só há radioatividade quando o aparelho é acionado, ainda que chegue com energias muito mais altas. “Se tu entrares e tu não acionares o botão, ou se aquilo não estiver ligado na tomada, não tem radiação. Eu não preciso me preocupar, pode ficar lá dentro, tomar café, não tem problema nenhum”, esclarece Trombini, professor da UFCSPA, traçando um paralelo com as novas máquinas de radioterapia. 

Segundo Fernando Razuck, do Instituto de Radioproteção e Dosimetria, da CNEN, o acidente também motivou estudos e aprofundamentos na área da medicina. “Levou ao teste de novos radionuclídeos que possam substituir o césio na parte médica. Levou também a uma efetivação da comunicação com o público, adotando ações e treinamentos de acidentes com simulações a partir de comunicação, para saber como lidar. E outros indiretos, como a análise de DNA.” Para Razuck, o aspecto legal, com o dono da fonte sendo responsabilizado em caso de algum acidente, a obrigação da presença de um supervisor treinado durante o uso da fonte e a ampliação de rede de autoridades de emergência preparadas para atender acidentes diminuem a possibilidade de um novo acidente como o de Goiânia. “O elo mais fraco é a população, que tem medo e não sabe o que fazer caso venha a encontrar uma fonte. A educação é de extrema relevância, não só para você identificar a área, mas para você também atrair gente para trabalhar na área nuclear”, opina.

Radiação aliada da medicina

A radiação é utilizada no campo médico há mais de cem anos. “No início era usada de forma descontrolada, para tudo que se podia imaginar. Ao longo do tempo se controlou a aplicação e hoje a radiação, se manuseada da forma correta, como se faz, não tem risco nenhum para a população, só tem vantagens”, expõe Henrique Trombini, docente de física médica na UFCSPA. “Radiação sempre foi um tema sensível para a população em geral, sempre causa medo”, acredita. Mas a aplicação dos elementos radioativos é uma grande aliada da medicina, talvez mais do que se perceba. A propagação de energia é usada tanto no diagnóstico quanto no tratamento de doenças. O exame mais conhecido é a radiografia, que usa o raio X para verificar se ossos estão fraturados ou quebrados, além dele, existem a tomografia, mamografia e angiografia. Já a radioterapia é prescrita para pacientes com câncer.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895