Acidente no Japão: um "milagre" cultural

Acidente no Japão: um "milagre" cultural

Especialistas explicam como uma colisão entre duas aeronaves, seguida de incêndio, resultou em mais de 360 pessoas salvas e apenas cinco mortes no Aeroporto Internacional de Haneda, em Tóquio

A Airbus A350 da Japan Airlines pousava no aeroporto quando bateu contra um avião da guarda costeira

Por
Rodrigo Thiel

Tente imaginar como seria evacuar um avião em chamas com cerca de 360 passageiros e tripulantes em menos de 90 segundos. Esta “cena de filme” aconteceu de fato e chamou a atenção de todo o mundo depois que dois aviões colidiram em plena pista de pouso do Aeroporto Internacional de Haneda, em Tóquio, no último dia 2. Ao todo, eram 367 passageiros, sendo 8 crianças e 12 tripulantes a bordo do Airbus A350 da Japan Airlines que pousava no aeroporto. Todos saíram com vida, apesar do susto de ver a aeronave ser consumida pelas chamas.

Já no segundo avião, um Dash 8 da guarda costeira do Japão, apenas o capitão saiu com vida. A aeronave tinha como missão entregar suprimentos na província de Ishikawa, que havia registrado um grande terremoto no dia anterior. Os outros cinco tripulantes perderam a vida no acidente. 

A colisão possui elementos similares ao desastre aéreo de Tenerife, nas ilhas Canárias da Espanha, em 1977, considerado até hoje a maior tragédia da aviação mundial.

Especialistas consultados analisaram os fatores que culminaram no acidente e também no salvamento das mais de 360 pessoas. Conforme eles, ainda restam dúvidas sobre o que ocorreu naquele final de tarde na capital japonesa. Por outro lado, não houve milagre para que tantas pessoas tenham saído com vida, mas sim uma demonstração da cultura nipônica, baseada no coletivismo e em um comportamento ordeiro, e do treinamento.

O acidente, a comunicação aérea e as suposições

Eram 17h47 (horário de Tóquio) quando o Airbus A350 da Japan Airlines tocou na pista C do aeroporto de Haneda com mais de 360 pessoas a bordo. Instantes depois de encostar no solo, uma grande explosão foi registrada pelas câmeras de monitoramento do terminal. A aeronave comercial havia colidido de frente com outra, menor, da Guarda Costeira. A principal suposição para que tal acidente tenha ocorrido é um ruído na comunicação entre torre e aeronaves, fato que já está sendo investigado.

O coordenador do curso de Ciências Aeronáuticas da Escola Politécnica da PUCRS, Lucas Fogaça, explicou de forma breve como funcionam as comunicações entre aviões e torre de controle. Ele conta que, para evitar falhas, a comunicação na aviação utiliza, por padrão internacional, a língua inglesa. Já em voos domésticos, é possível utilizar a língua nativa.

“Existe um protocolo de fraseologia aeronáutica que tem termos e regras especiais para que se evite ambiguidade ou confusão. Um exemplo é o sistema de cotejamento. Quando o controlador passa uma instrução, o piloto obrigatoriamente precisa responder ‘ciente’ e repetir a informação (cotejar). Sobre termos, algumas expressões não existem, como line up and hold (alinhar e manter na pista), pois se confundiria com line up and roll (alinhar e rolar/decolar). Atualmente, se usa line up and wait (alinhar e esperar), que é bem diferente e evita ambiguidades”, citou.

Fogaça também destacou que a própria estrutura do aeroporto também contribui na comunicação com o piloto da aeronave, principalmente o sistema de iluminação codificado por cores. “Existem marcações que são pintadas e indicam o ingresso em pista, as pistas de táxi e entrada em pátio. Em alguns aeroportos maiores, existem barras de parada que são luzes perpendiculares que ficam vermelhas quando o piloto não pode passar. Quando o piloto pode ingressar na pista, elas se apagam ou ficam verdes. Então, tem todo uma infraestrutura para auxiliar os pilotos a se manterem dentro dos espaços autorizados e fora de perigo”, completou.

O ex-controlador de voo da Aeronáutica Elones Fernando Ribeiro supõe que o acidente possa ter ocorrido em função de diversos fatores, desde a comunicação à estrutura da pista. Apesar disso, ele entende que a troca de mensagens entre a torre de controle e os pilotos de ambas aeronaves foi clara, assim como as respostas destes para os controladores.

Ribeiro também é engenheiro e trabalhou por décadas como controlador de voo nos aeroportos de Congonhas, em São Paulo, e Salgado Filho, em Porto Alegre, além de ser um dos fundadores do curso de Ciências Aeronáuticas da PUCRS e seu diretor entre 2004 e 2017. Para ele, a grande dúvida está no motivo que levou o avião da Guarda Costeira a entrar na pista sem autorização para a decolagem.

“Analisando os áudios, o comandante da Guarda Costeira chama a torre para taxiar na pista lateral e o controlador diz que ele será o ‘número 1’. A comunicação foi clara, pois a torre falou para manter o táxi na pista lateral e aguarda a posição na intersecção. Inclusive, uma das últimas palavras do comandante antes do acidente foi de cotejamento, ou seja, repetiu. Ele entendeu perfeitamente o que a torre falou. Na comunicação, os dois estão corretos. Eu não sei por que ele não manteve a posição ou o que o fez entender que era para entrar na pista”, comentou.

Segundo o ex-controlador, o correto seria a aeronave da Guarda Costeira aguardar algum aviso da torre de controle antes de tomar alguma atitude. “Depois que o outro avião pousasse, a torre ia dizer para o comandante que a pista estaria livre para a decolagem. Até porque quem está no ar tem a prioridade para pouso sobre a aeronave que vai decolar. Antes de sair o relatório final, são apenas hipóteses baseadas na comunicação aeronáutica”, ressaltou. Ele lembra ainda que, dias antes do acidente, um relatório indicava aos pilotos que as luzes de alerta na pista poderiam estar inoperantes. Ribeiro conta que estas luzes são essenciais para indicar ao comandante da aeronave que é necessário aguardar e manter posição a uma certa distância da pista. “À noite, aquelas luzes deveriam estar vermelhas para o avião da Guarda Costeira. Entretanto, estas luzes poderiam estar inoperantes. Talvez o piloto também não tenha visto as faixas no chão por causa do escuro e tenha entrado na pista sem querer.”

Este tipo de acidente, envolvendo uma colisão de dois aviões na pista, chamou a atenção do ex-controlador pelas semelhanças com o desastre de Tenerife, ocorrido em 1977 no aeroporto de Los Rodeos, que causou a morte de 583 pessoas. Neste acidente, dois Boeing 747, sendo uma da KLM e outro da Pan American, colidiram na pista enquanto um tentava decolar e o outro taxiava.

Entretanto, apesar da semelhança em função da colisão na pista, há também diferenças. “Em Tenerife, o principal fator foi a fraseologia aeronáutica. O piloto entendeu mal e causou o acidente. Neste, a torre falou com clareza e o piloto reforçou o entendimento. Mas ainda não podemos tirar conclusão nenhuma”, finalizou.

Na foto, os destroços das aeronaves após o acidente

O comandante brasileiro Rafael Santos, que trabalha para umacompanhia aérea da Coreia do Sul, diz que o que possibilitou a salvamento dos passageiros foi uma combinação de fatores: a disciplina do povo, o treinamento da tripulação e a tecnologia do avião. 

‘Tudo foi feito de forma ordeira, coordenada e no tempo adequado’

O comandante brasileiro Rafael Santos trabalha desde 2006 na maior companhia aérea da Coreia do Sul, a Korean Air. Atualmente, ele pilota aviões do modelo Boeing 777, de porte e tecnologia similar ao Airbus A350. Em função da proximidade da Coreia do Sul com o Japão, ele realiza muitos voos para o país do sol nascente e destaca a cultura oriental como algo “diferente” para um brasileiro.

Sobre a estrutura do aeroporto onde ocorreu o acidente, Santos compara com a pista de Congonhas em São Paulo. Trata-se de um aeroporto “antigo, cheio de pista e puxadinho”, mas com um grande movimento de aviões, mesmo não sendo o principal terminal que atende a capital japonesa. Questionado sobre os fatores que podem ter resultado no salvamento das mais de 360 pessoas que estavam a bordo do avião, ele conta que o essencial foi justamente este comportamento coletivo. “Não tem milagre nenhum, mas sim uma combinação de fatores. Primeiro, a disciplina do povo durante a evacuação, com todos seguindo os comandos de forma ordeira. Segundo, o treinamento eficiente da tripulação. Terceiro, o avião é novo, com uma tecnologia boa, feito para evacuar os passageiros em 90 segundos. O acidente foi no lugar certo, do jeito certo e com povo certo, se é que dá para dizer isso. É como se fosse um teatro: tudo foi feito de forma ordeira, coordenada e no tempo adequado”, destacou.

Com quase duas décadas de vivência no leste da Ásia, o comandante reforçou a calma e a organização da cultura japonesa comparada à brasileira neste tipo de situação. “Tente imaginar esta situação acontecendo no Brasil, com nossa cultura e visão de individualidade. Com um fato desses, já teria passageiro com celular fazendo live no Instagram ou mandando selfie. Outro passageiro estaria pegando o cachorro, papagaio ou a sogra”, brincou.

Santos deu mais detalhes dos comandos dados aos passageiros. Ele cita que apesar das ordens serem fixas e decoradas, elas são ajustadas às situações. Neste caso, citou o fato de que o avião não foi evacuado por todas as portas de emergência, com as pessoas sendo direcionadas apenas para pontos onde não havia incêndio. Por isso, ele reforça que o treinamento dos comissários do voo também foi importante.

“A gente precisa entender que comissário não está lá para servir docinho, refrigerante ou fazer o passageiro colocar o cinto. A função deles é a segurança do voo. A voz de comando dada em um momento adequado é fundamental para você sair em segurança. E um trabalho adequado reduz muito a chance de alguém morrer queimado. Por isso, não foi milagre, foi treinamento, cultura do povo e design do avião.”

*Colaborou Comandante Eduardo Ayub

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895