Agro molecular: modernidade para produzir

Agro molecular: modernidade para produzir

Aposta de Israel em educação, ciência e tecnologia gerou um ecossistema que está propiciando o cultivo de alimentos em ambientes controlados, sem uso de terra e água, e criando máquinas sofisticadas para todas as etapas dos cultivos

Drones utilizados na colheita de maçã

Por
Itamar Pelizzaro

A partir de uma célula bovina, a impressora 3D produz bifes de picanha ou filé mignon, seja com marmoreio de Angus ou Wagyu, espécie bovina que fornece a carne mais cara do mundo. Nos pomares, a colheita é feita por drones, enquanto robôs fazem tratos culturais e máquinas produzem leite sem nenhuma vaca por perto. Tudo isso parece ficção científica, mas são exemplos reais da inovação e do desenvolvimento tecnológico em Israel, que fez da educação a base para sua evolução e o nascimento de startups que focam na produção de alimentos em ambientes controlados, driblando a escassez de terras férteis e água do Oriente Médio.

O ecossistema de agfoodtech (termo utilizado para definir tecnologia em agricultura e alimentos) em Israel foi o tema abordado pelo engenheiro Ricardo Lomaski, do Instituto de Tecnologia de Israel (Technion), durante o South Summit Brazil, em Porto Alegre, na semana passada. Lomaski participou de uma iniciativa chamada Rota da Inovação, realizada no Tecnopuc, parque tecnológico que também fomenta o surgimento e desenvolvimento de empresas inovadoras da agropecuária, vinculadas ao Celeiro AgFood Hub. “O que fez o Brasil sair da condição de importador para exportador de alimentos foi a tecnologia”, justifica o coordenador do Celeiro AgFood Hub e professor da Escola de Negócios da PUCRS, Luís Humberto Villwock.

Lomaski esteve no Tecnopuc para falar da trajetória e das experiências de Israel em inovação que promete transformar a indústria global do setor. Assim como o agro brasileiro evoluiu pela ciência, em Israel a visão de que o futuro deveria estar cimentado em conhecimento remonta a 1870, época em que a região desértica pertencia ao Império Turco-otomano. Naquele ano foi fundada a Mikveh Israel, primeira escola de agricultura de Israel. “Era uma região muito pobre, e diversos jovens judeus não tinham alimentos, passavam fome”, conta Lomaski. O colégio técnico daria noções de agricultura para a juventude, em um período em que os judeus na Europa não tinham técnica agrícola. “Começou-se a ensinar do zero, sem nenhum conhecimento e pouco a pouco foi evoluindo”, diz Lomaski.

No fim do século 19, Theodor Herzl, fundador do moderno sionismo político, via que a ciência estava se desenvolvendo cada vez mais rápido. “Ele imaginava que o futuro de Israel deveria ser baseado em ciência e tecnologia, porque a ciência iria ser tão desenvolvida que não teria mais limite. O impossível não seria mais impossível”, comenta Lomaski. Na visão de Herzl, as universidades seriam fundamentais para o país. Em 1924, foi fundado o Technion, com presença de Albert Einstein. “Os repórteres perguntaram a Einstein: por que você está fundando uma universidade se nem existe Israel? Ele falou: primeiro você tem que constituir a base intelectual do país, porque serão estudantes que vão sair das universidades e vão resolver os futuros problemas do Estado de Israel. Ele acreditava que as universidades eram a base do país, e um país que iria existir precisaria de uma elite intelectual para resolver os problemas”, explica.

Israel ainda ganharia duas instituições de Ensino Superior, a Universidade Hebraica em Jerusalém (1925) e o Instituto Weizmann da Ciência (1934). O estado israelense foi fundado em 1948, mas os pilares já estavam erguidos para sustentar agricultura, infraestrutura e indústrias de base tecnológica. Em 1947, foi criado o Kibbutz Hatzerim, em meio ao deserto, base para a empresa de irrigação Netafim, que salvou a comunidade da falência. “O vilarejo não estava dando certo. A população estava abandonando a área, até que um engenheiro agrícola formado no Technion começou a desenvolver tecnologias para irrigar o deserto e desperdiçar menos água. Assim ele criou a maior empresa do mundo de irrigação”, narra Lomaski. A Metafin hoje é uma companhia mundial, presente em todos os países da América Latina e com fábrica em São Paulo.

Já em 1971, o governo de Israel criou um escritório para planejar a ciência e a tecnologia do país, atraindo multinacionais. O colégio técnico agrícola de 1870 continua recebendo estudantes, em internato, e recentemente recebeu um hub de agfoodtech.

A Universidade Hebraica também começou a desenvolver novas culturas que pudessem ser implantadas com menos água e em regiões áridas. Lá foi desenvolvido o tomate cereja, que precisa de menos água e dura mais. “Hoje a patente já expirou, mas a universidade tem outras patentes de outros tipos de tomate, em parcerias com empresas privadas e governo.” Conforme Lomaski, Israel conta atualmente com cerca de 350 empresas de agfoodtech, quatro consórcios de pesquisa e apoio governamental de 280 milhões de dólares entre 2018 e 2020.

Existem ainda sete incubadoras incentivadas pelo governo e sete programas piloto ativos, com 60 milhões de dólares por projeto.
“Israel está voltando a ser o país da agfoodtech porque tem uma nova geração que está criando produtos muito mais sofisticados para a agricultura”, diz Lomaski. Segundo ele, são empreendedores com doutorado e mestrado, startups oriundas das universidades, patentes sendo registradas por professores com mais experiência e recursos próprios para desenvolver tecnologias de alto nível. “Cada vez mais temos a parte de foodtech dominando todo o setor de agricultura, que recebe a maior parte do investimento em agricultura, cerca de 70%”, finaliza Lomaski.

Colheita com drones e robôs

A escassez de mão de obra e o custo de trabalhadores impulsionou a empresa Tevel Aerobotics Technologies a desenvolver drones para a colheita de maçãs. Conforme Ricardo Lomaski, uma empresa da Itália já utiliza o equipamento em seus pomares. “Esse drone sabe identificar se a maçã está pronta, analisando por imagens a qualidade da fruta e se ela deve ser colhida ou não”, conta Lomaski. De acordo com o representante do Technion, a tecnologia já está em solo brasileiro, com testes da empresa Citrosul para a colheita laranja.
Outro exemplo de uso de ferramentas tecnológicas é da empresa Metomotion, que investe em robôs para colheita de tomate cereja, tendo um investidor brasileiro participando da iniciativa. “Cada vez mais Israel utiliza mais drones e robôs para ter tecnologia de precisão e agricultura de alto nível”, destaca Lomaski.

Carne sem pecuária, impressa em 3D, e leite sem vacas

Carne cultivada em impressora 3D | Foto: Divulgação / CP

Tudo que a natureza cria pode ser replicado em laboratório, em ambiente protegido. Esse é um princípio que está norteando startups de Israel, que tem duas incubadoras de foodtech, a The Kitchen e a Fresh Start. A primeira foi fundada em 2015 e cunhou o termo foodtech. É financiada pelo governo de Israel, que coloca dinheiro para criar startups e laboratórios. No início, iria incubar iniciativas para desenvolver novos alimentos naturais, mas fez tanto sucesso que moldou o setor em Israel. Ela criou uma cidade inteira em Israel só com empresas de foodtech no parque tecnológico do Instituto Weizmann.

Uma das empresas do hub é a MeaTech, dedicada à carne cultivada. Em 2017, a professora Shulamit Levenberg, da Faculdade de Engenharia Biomédica do Technion, especialista em células-tronco, mantinha uma impressora 3D que produzia pele humana para enxertos. “Em vez de fazer enxerto de pele de outra pessoa, o que pode dar rejeição, você imprime em laboratório a partir de uma célula sua e faz enxerto com a própria pele”, esclarece Ricardo Lomaski.

Um aluno vegano provocou a professora para usar a impressora e fazer carne que pudesse ser comida pelos veganos, sem sacrificar animais. Shulamit não ficou convencida, mas a incubadora apostou na ideia, abriu a empresa e assumiu toda a burocracia, liberando a professora para a pesquisa. “Assim foi fundada a primeira empresa de carne de laboratório do mundo, de carne cultivada”, diz Lomaski.

O processo parece simples. “Hoje em Israel tem muita proteína que não vem do animal, mas da célula. Então, pega-se a célula e coloca-se em um biorreator. A célula cresce, com porcentagens de gordura e sabor”, explica Lomaski. A produção da carne acontece em uma impressora 3D, abastecida com a tinta biológica, formada por proteína e gordura. “Você pede na impressora se quer filé mignon, picanha. Ela imprime e, um minuto e meio depois, você cozinha”, detalha o agrônomo. A MeaTech tem impressoras para carne bovina e também peixe.

Outra empresa incubada, a Aleph Farms já fez testes na Estação Espacial Internacional para provar que é possível produzir carne em qualquer lugar do mundo, sem pasto nem pecuária. “Este ano, Israel aprovou e vai ser o primeiro país do mundo que vai vender carne feita em laboratório, começando em restaurantes. A ideia de Israel é fazer uma agricultura molecular do futuro”, diz Lomaski. No Brasil, a parceira da iniciativa é a BRF, que pode ter a primazia de construir a primeira fábrica de carne cultivada no Brasil. Outro empreendimento é a Redefine Meat, que já tem sua impressora 3D para proteína vegetal à venda em Israel e na Europa.

Outra inovação no setor de proteína animal vem de companhias que estão ‘ordenhando’ máquinas para gerar leite em laboratório. A empresa Imagindairy tem o slogan é "leite de verdade, sem vacas", e a companhia Remilk aposta em “laticínios de verdade, sem vacas”. As companhias utilizam apenas a célula bovina para fazer seus produtos.

A Imagindairy deve lançar este ano um leite para pessoas que têm intolerância à lactose. “Tem empresa que está criando leite materno por meio de células do leite materno original”, conta Lomaski. A empresa Winmilk vai lançar este ano, nos Estados Unidos, um iogurte natural feito de leite, mas sem leite, que qualquer pessoa poderá consumir.

Cacau e açafrão em fazendas internas

Produção de açafrão em fazenda urbana | Foto: Divulgação / CP

A tecnologia perseguida por startups mira produtos de alto valor. Incubada em Israel, a empresa Celleste Bio criou uma tecnologia para replicar as condições de cultivo de cacau em ambiente protegido e ter produção em escala a partir de células consistentes e de alta qualidade. “O cacau é uma das commodities que mais subiram de preço no mundo e tem previsão de que falte cacau nos próximos 20 anos”, justifica Ricardo Lomaski. A Celleste Bio não produz chocolate, apenas enviará à indústria a manteiga ou massa de cacau.

A Saffron Tech também direciona seus esforços para uma iguaria cara. A companhia produz o tempero mais valorizado do mundo, feito com o açafrão verdadeiro, que é proveniente de flores roxas, a crocus sativus, com sabor mais delicado e utilizado na culinária do Mediterrâneo. O quilo deste tempero chega a custar R$ 70 mil. “A empresa trouxe a semente de outro país e cultiva o açafrão em uma fazenda interna, com ambiente 100% controlado”, descreve Lomaski.

A ideia de gerar os produtos mais caros do mundo em fazendas urbanas de Israel envolve ainda frutas exóticas, proteínas de insetos como o grilo e até o escargot. A produção exige equipamentos sofisticados e pessoal altamente qualificado, ajuda das universidades, recursos para pesquisa e adaptação de robôs. “Isso permite fazer alimentos mais saudáveis para quem tem problemas de saúde e alimentos que tenham menor impacto na natureza e de eventos climáticos”, ressalta o especialista. “A gente sabe que o mundo inteiro tem regiões com falta de alimentos, de água. Com toda essa tecnologia, você vai poder ter alimentos e água em qualquer lugar do mundo. Essa é a ideia”, completa.

Mão de obra cibernética

Empresa desenvolveu robô para a colheita de tomate cereja | Foto: Divulgação / CP

Em frente ao Mar da Galiléia, o Centro de Inovação Kinneret mostra resultados obtidos nas áreas de agricultura e engenharia das águas em parceria com a maior cooperativa da região norte de Israel. O Kinneret concentra empreendedorismo na região a partir de iniciativa do cooperativismo, que injetou recursos em uma área em que quase não havia startups. “Todo jovem saía da região e ia para o centro de Israel, porque não havia oportunidades de emprego”, conta Ricardo Lomaski.

No centro, a cooperativa mantém laboratório com 10 pesquisadores, que desenvolvem tecnologias e projetos. Há testes com plantas para medir a quantidade de água necessária para seu crescimento, uma startup que administra uma fazenda cuidada apenas por robôs, que deslizam pelo alto das estufas, fazem as atividades de fertilização e colheita. “Eles estão desenvolvendo placas solares, colocadas em cima da fazenda, permitindo a fotossíntese das plantas e geração de energia solar”, diz Lomaski. “Se isso vai ser o futuro ninguém sabe, mas é um piloto, uma maneira de mostrar que hoje temos tecnologia com a qual podemos fazer 100% do serviço, sem uso da mão de obra humana”, afirma.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895