Agtechs impulsionam inovação no campo

Agtechs impulsionam inovação no campo

Estudo mostra que quantidade de startups voltadas ao agronegócio aumentou no país em plena pandemia, com destaque para o Rio Grande do Sul, quarto estado em negócios do tipo

Por
Patrícia Feiten

Mais ciência, menos palpites. Com esse lema, há duas safras, o agricultor Eduardo Ames (foto acima, com a filha Isabela) decidiu promover uma pequena revolução em sua propriedade de 200 hectares em Horizontina, onde planta soja em rotação com milho. Ele tinha comprado máquinas avançadas, mas queria aliar esse aparato a técnicas de agricultura de precisão, que garantissem uma aplicação direcionada dos insumos levando em conta as variações entre os talhões. Nessa empreitada, seguiu o roteiro de uma consultoria que usa inteligência de dados para fornecer soluções agronômicas integradas. Já na primeira colheita da soja, a produtividade da fazenda, que antes era de 42 a 45 sacas por hectare, subiu para marcas entre 55 e 60 sacas do grão. Na lavoura de milho, o salto foi de 160 para 200 sacas.

“Hoje, a gente aloca o mesmo volume de recursos para onde eles vão gerar um retorno maior”, afirma o produtor. “Para colher mais, eu tinha de investir mais. Hoje, invisto melhor.” As recomendações de que Ames precisava para extrair mais resultados de cada porção de terra vieram da Connect Farm, uma das startups gaúchas voltadas ao agronegócio, as chamadas agtechs (ou agritechs). Com forte apelo digital e um modelo de negócios ágil, que reage com rapidez a novas demandas apresentadas pelo campo, essas empresas emergentes têm levado uma onda de inovação às fazendas. A lista de soluções criadas é bem diversa: inclui desde softwares de monitoramento do plantio e sistemas de detecção de pragas a drones, fertilizantes alternativos e serviços financeiros.

Lançado em maio, o Radar Agtech Brasil 2020/2021, publicado pela Embrapa em parceria com a SP Ventures e a consultoria Homo Ludens, identificou 1.574 agtechs em atividade no Brasil. O estudo mostra que, em plena pandemia de Covid-19, o número de empreendimentos aumentou 40% no ano passado em relação ao ano anterior. No Rio Grande do Sul, o quarto estado em número de negócios do tipo, são 124 agtechs ativas (7,9% do total). “O RS é o terceiro estado com maior número de aceleradoras focadas nessas empresas do agro, tem a quinta colocação em incubadoras e é o terceiro em startups com maior investimento financeiro”, destaca o analista Cleidson Nogueira Dias, da Secretaria de Inovação e Negócios da Embrapa.

Para o coordenador da Comissão de Inovação da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Donário Lopes de Almeida, a expansão das agtechs é uma resposta à necessidade de eficiência do agronegócio. “O que está acontecendo é um pouco em função de o agro estar sendo valorizado, da alta do preço das commodities. (Há) maior interesse dos empreendedores em resolver os problemas dos agricultores”, afirma. A presença de polos tecnológicos ligados a universidades em diversas regiões do Estado também ajuda a fomentar a inovação, diz Almeida. Porto Alegre, Santa Maria e Pelotas, por exemplo, estão entre as 26 cidades brasileiras com dez ou mais agtechs, de acordo com o estudo da Embrapa.

Com sede em Cachoeira do Sul e 21 especialistas, a Connect Farm tem menos de três anos de operação e atende cerca de 500 agricultores. No ano passado, um de seus clientes venceu o Desafio Nacional de Máxima Produtividade do Comitê Estratégico Soja Brasil (CESB), na categoria Irrigada. Sob sua tutela, a propriedade em Boa Vista das Missões colheu 111,9 sacas de soja por hectare, frente à média nacional de 54,5 sacas. Neste ano, a agtech comemora um crescimento de 80% na receita. “O fato de gerar resultado para o agricultor construiu muito da nossa história, e a possibilidade de ter outros parceiros que nos ajudaram a vender o serviço impulsionou o negócio”, diz o CEO Rodrigo Dias.

A Connect Farm integra o programa de aceleração promovido pelo hub de inovação AgTech Garage, em Piracicaba (SP). Segundo Dias, a consultoria trabalha em projetos que conciliem produtividade e sustentabilidade. Ao incentivar práticas agrícolas que reduzem as emissões e capturam mais dióxido de carbono no solo, quer preparar os produtores para futuras negociações no mercado de créditos de carbono. “Começamos a trazer ferramentas para que (o agricultor) faça o seu balanço de gás carbônico”, explica Dias. Outra de suas iniciativas, batizada de Connect 5k, pretende levar a agricultura digital a produtores familiares e propriedades de até 100 hectares.

A fazenda na palma da mão

Empreendimentos surgidos em território gaúcho apresentam soluções que atendem a demandas específicas dos produtores rurais por meio de sistemas de gestão da propriedade, integração de dados e marketplaces de itens agropecuários

Aegro, de Dusso (E), ajuda na tomada de decisões que visam melhorar a eficiência das propriedades em meio ao aumento dos custos. Foto: Lia Dullius / Divulgação / CP

Sistemas de gestão de propriedade rural e plataformas integradoras de sistemas e soluções de dados estão entre as áreas de ação da maioria das startups do agro mapeadas no Radar Agtech Brasil 2020/2021. No total de empreendimentos, também se destacam os marketplaces de itens agropecuários, que oferecerem um ambiente de e-commerce estruturado para fornecedores venderem os mais diversos produtos – de insumos a ferramentas, peças de reposição e máquinas. Com soluções que atendem demandas específicas dos produtores rurais, startups nascidas no Rio Grande do Sul vêm prosperando nesses segmentos.

Um dos projetos mais bem-sucedidos, a Aegro faz parte da primeira safra de agtechs com genética gaúcha. Fundada em 2014 por quatro estudantes de ciências da computação, em uma das incubadoras tecnológicas da Ufrgs, tem hoje uma equipe de 115 pessoas espalhadas em quase 20 estados, e seu software de gestão agrícola é líder nacional em aplicativos voltados a pequenas e médias fazendas. A plataforma tem quase 1,8 mil assinantes no Brasil, o que equivale a cerca de 3 milhões de hectares de lavouras administrados com o uso do serviço. “São produtores familiares, que encaram a fazenda como um patrimônio da família, cuidam com apreço, porque muitas vezes é a herança que vão deixar”, diz o CEO da startup, Pedro Dusso.

Para o executivo, a grande sacada da empresa foi desenvolver uma ferramenta capaz de contemplar todos os processos do produtor – do orçamento do plantio ao controle de estoques e à venda da produção. Com uma interface simples, o Aegro ajuda na tomada de decisões que melhoram a eficiência das propriedades diante da pressão inclemente dos custos. “As margens de lucro vêm diminuindo, o preço dos insumos vem aumentando, os produtores acabaram notando que não é tão fácil fazer uma agricultura lucrativa como era na época dos seus pais”, observa Dusso.

Uma das dez startups brasileiras selecionadas para o programa de aceleração do Google neste ano, a Digifarmz, de Porto Alegre, despontou em 2017. A proposta é auxiliar produtores e engenheiros agrônomos no manejo de doenças fitossanitárias por meio de uma plataforma digital que reúne informações sobre clima, genéticas de cultivares e datas de semeadura, entre outros dados. “No início, trabalhamos com a ferrugem da soja, que era um grande problema no Rio Grande do Sul, e depois fomos ampliando para outras doenças”, diz o agrônomo Alexandre Chequim, CEO e cofundador da startup, que, além dos três sócios, envolve mais 23 profissionais.

Com os resultados obtidos pelos clientes – a promessa é um acréscimo de 3 a 18 sacas da oleaginosa na produtividade por hectare –, a startup ultrapassou fronteiras. Da soja, a equipe passou a desenvolver modelos para lavouras de trigo e milho. Hoje, a Digifarmz atende mais de 1,5 mil fazendas no Brasil. Para a safra 2021/2022, projeta um crescimento de receita de mais de 100%, atingindo R$ 1,3 milhão. Chequim credita o sucesso do negócio à facilidade de uso da solução. “A Digifamrz não demanda nenhum hardware a campo. Temos hoje produtores de 8 até 40 mil hectares”, afirma.

Fuchs (D, ao lado do diretor Esequiel Ransolin) diz que ideia é democratizar a digitalização. Foto: Fabio Bastos / Divulgação / CP

Mais recente nesse campo fértil para inovações tecnológicas, a Campear mira os pequenos negócios rurais. A startup chegou ao mercado em setembro de 2021 disposta a aprimorar a experiência das plataformas de e-commerce. Resultado de um projeto desenvolvido no parque tecnológico da Universidade do Vale do Taquari (Univates), em Lajeado, é o primeiro marketplace do agronegócio com uma rede própria de franquias. Para ter uma loja online no site, a empresa interessada paga uma mensalidade ou pode optar por adquirir a franquia, sem necessidade de investimento inicial, recebendo uma participação nos resultados atingidos em sua região.

O fundador e CEO da Campear, Jean Fuchs, diz que a proposta é democratizar a digitalização do agronegócio, inserindo empreendimentos que não têm um sistema de e-commerce estabelecido ou mesmo um site. Para isso, explica, a startup decidiu apostar em um modelo híbrido, que investe no suporte direto aos usuários. “Em nossas pesquisas de mercado, identificamos que não adianta colocar uma plataforma no ar sem a presença física no campo”, ressalta Fuchs. “Nosso franqueado está no campo, conversando com as empresas e os produtores, ajudando-os a entender a plataforma.” A Campear já atua em mais de 350 municípios gaúchos e em dezembro inicia a expansão nacional, afirma o empreendedor.

Toque high-tech na pecuária leiteira

Ferramentas criadas por startups gaúchas permitem monitorar comportamento dos animais e oferecem tecnologia portátil para o diagnóstico da qualidade do leite

Zeit, dos sócios Renan Buque e Paula Dalla Vecchia, foi selecionada para programa de aceleração do BRDE. Foto: Alesson M. Oliveira / Divulgação / CP

Com sede em Santa Maria, a Cowmed nasceu em um programa de incubação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e fez fama com uma coleira para monitoramento de vacas 24 horas. O dispositivo detecta se os animais estão entrando no cio, indicando o melhor momento para a inseminação, além de identificar doenças e anomalias no comportamento do rebanho, possibilitando a adoção de medidas preventivas e a redução do descarte. A solução vem com antena receptora e software de análise dos dados e, em caso de qualquer problema com os bovinos, o produtor recebe alertas de saúde pelo celular.

Fundadores da Cowmed, os irmãos Leonardo e Thiago Martins lançaram o produto no mercado em 2015. Hoje, a tecnologia soma cerca de 30 mil animais monitorados em 11 estados do Brasil e também é usada em propriedades no Paraguai, nos Estados Unidos e no Canadá. A equipe de atendimento inclui 45 profissionais. Segundo Leonardo, a migração do modelo de vendas para a oferta do dispositivo em sistema de comodato, que ocorreu em 2018, foi decisiva para esse crescimento. “Hoje, atendemos produtores (com rebanhos) de 20 vacas até 1,3 mil vacas”, afirma o empreendedor, que é engenheiro eletricista. Para este ano, ele estima um crescimento de 180% dos negócios em relação a 2020.

Da Incubadora Tecnológica da UFSM, saiu também, há menos de dois anos, a solução desenvolvida pela Zeit Análises Químicas, que apostou em uma tecnologia portátil para o diagnóstico de qualidade do leite no campo. Um aparelho de cerca de 150 gramas faz a análise do material, e os dados são transmitidos, via bluetooth, a um aplicativo de celular que envia os resultados ao cliente. O objetivo é facilitar a vida do produtor que hoje precisa coletar o leite e levar a um laboratório, tendo de aguardar dias ou semanas pelo resultado, explica o diretor executivo Renan Buque, um dos fundadores da startup.

No ano passado, a Zeit venceu o programa Agroinnovation, do Sebrae, e em agosto deste ano foi selecionada para o programa de aceleração BRDE Labs, do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE). Os sócios agora trabalham em um projeto semelhante para a cultura da soja. Em parceria com o Genesis Group, lançaram em julho a solução Nira, que permite determinar em poucos minutos os níveis de proteína e óleo dos grãos. Ainda em testes, a proposta tem potencial para promover uma mudança na cadeia da soja, acredita Buque. “A expectativa é fazer com que a soja seja comercializada (com base nos) seus níveis de proteína e óleo, assim como no mercado de cana-de-açúcar, em que o produtor recebe pelos níveis de açúcar (sacarose por tonelada), não só pela tonelada”,explica.

Controle biológico de pragas

Uma arma de apenas 1,5 mm contra um dos inimigos mais vorazes da lavoura. Essa é a ideia que mobiliza a BioIn, agtech especializada no controle biológico de pragas. Com uma biofábrica incubada no Centro de Biotecnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), a startup atua há três anos na produção, em escala comercial, de uma microvespa capaz de combater lagartas danosas à horticultura.

O princípio é curioso: a vespa põe seus ovos dentro dos ovos das mariposas que originam a praga, impedindo o ciclo da lagarta, explica Camila Correa Vargas, um dos quatro sócios da BioIn. A solução desenvolvida pela startup para venda aos produtores vem em uma cartela contendo 45 mil ovos de mariposa “parasitados”, para aplicação em 1 hectare. Assim, o agricultor pode produzir as vespas em sua propriedade e, quandos liberados na lavoura, os insetos voam em busca de outros ovos do hospedeiro.

Camila, da BioIn, atua na produção de uma microvespa capaz de combater lagartas danosas à horticultura. Foto: Arquivo Pessoal / CP

Segundo Camila, a produção ainda é pequena, de 700 gramas por mês – cada grama equivale a 36 mil ovos – e voltada a pequenos produtores orgânicos. Mas a startup trabalha para levar suas soluções a áreas de até 500 hectares, aplicando-as nas culturas do arroz e da soja. “Os agricultores vêm aderindo cada vez mais ao uso de ferramentas biológicas e buscando utilizar tecnologias mais sustentáveis, até aqueles que usam defensivos químicos’, diz Camila.

Celeiro de tecnologias

Inaugurado em maio deste ano, polo de inovação visa tornar-se referência para o agronegócio do país e já rende frutos com empresa voltada à criação de ovinos

Usuário do software de gestão OvinoPro, Alexandre Kloppemburg (D, ao lado de Carnesella), aposta em uma ovinocultura “de números”. Foto: Diogo Abelin / Divulgação / CP

Liderado pelo Tecnopuc, pela Anlab e pela Ventiur Aceleradora, o Celeiro Agro Hub nasceu com uma meta ambiciosa: tornar-se uma referência entre polos de inovação tecnológica para o agronegócio no país. Inaugurado em maio no parque tecnológico da PUCRS, com 40 empresas vinculadas, o projeto busca abarcar 200 empreendimentos até o final do próximo ano. Fazer com que ideias brilhantes cheguem até a porteira, porém, é uma tarefa árdua. Das mais de 1.500 startups do agro existentes no Brasil, mais da metade ainda são projetos muito embrionários, observa o coordenador do Celeiro, o agrônomo e professor Luis Villwock. “Nosso papel é fortalecer essas iniciativas para que virem negócios robustos”, diz.

Para consolidar o ecossistema de agtechs, o Celeiro vem buscando a aproximação com associações de produtores, multinacionais de insumos e agroindústrias. Outra estratégia é a troca de experiências com instituições de outros países, como Argentina, Alemanha e Israel. “Temos que criar (negócios) de classe mundial”, destaca Villwock.

Uma das startups assistidas pelo hub, a OvinoPro criou um software de gestão sob medida para criadores de ovinos e caprinos. Graduado em sistemas de informação, o empreendedor Adriano Freitas conta que a ideia surgiu a partir de uma necessidade da própria família, que mantém uma propriedade rural em Butiá, e de uma oportunidade de mercado. “Fui conversar com entidades, com produtores. Praticamente se adaptavam soluções (desenvolvidas) para bovinos”, diz. Desde o lançamento da primeira versão do software, em fevereiro de 2020, a ferramenta conquistou em torno de uma centena de usuários em 15 estados, além de criadores do Chile, do Paraguai, da Colômbia e da Venezuela. 

A startup fez a diferença na rotina do produtor Alexandre Ozorio Kloppemburg. Ele usa o OvinoPro em dois criatórios de ovinos Hampshire Down – a Fazenda Capão Alto, em Bom Jesus, responsável pelo projeto Cordeiro da Serra, e a Cabanha dos Bugres, em Caxias do Sul, onde se dedica a um projeto de genética da raça com o veterinário Samuel Carnesella. Ao integrar dados zootécnicos e de manejo dos animais, permitindo um acompanhamento rigoroso mesmo à distância, o aplicativo contribui para a profissionalização da atividade, avalia Kloppemburg. “Esse software começou a mostrar um outro lado que tem de acontecer na ovinocultura, que é uma ovinocultura de números”, afirma o criador.

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895