Ainda vale a pena ser servidor público?

Ainda vale a pena ser servidor público?

Segundo dados do portal Transparência, em um período de seis anos, houve uma redução de 20 mil vínculos na ativa no Executivo do Rio Grande do Sul, enquanto que o número de inativos aumentou em 10 mil

Por
Mauren Xavier

Há algumas décadas, havia um conceito que imperava entre grupos da população: passar em concurso público era ter a vida resolvida, diziam. Estabilidade, salários e benefícios foram alguns dos atrativos que conquistaram uma grande mão de obra para atuar a favor do Estado. Porém, atualmente, no Rio Grande do Sul, quando se trata do poder Executivo, esse discurso tem perdido cada vez mais força. E, na prática, até tem sido rejeitado por profissionais. O déficit de recursos humanos na administração pública estadual não é recente, mas ganhou uma visibilidade extra. Segundo dados do portal Transparência do governo do Estado, o Executivo sofreu redução de 20 mil vínculos na ativa entre dezembro de 2016 e dezembro de 2021. Em 2016, eram 153 mil. No final do ano passado, eram 133 mil. Importante destacar que um servidor pode ter mais de um vínculo. Em número de servidores, segundo a secretaria Estadual do Planejamento, Governança e Gestão, atualmente, são 127 mil funcionários na ativa. O número permanece estável nos últimos três anos. Além disso, recentemente, houve uma recomposição de quadros em alguns setores. Ao mesmo tempo, segundo o portal Transparência o número de inativos (aposentados) passou, entre 2016 e 2021, de 157 mil para 167 mil.

No final do ano passado, o governo do Estado, por meio da Secretaria de Planejamento, abriu um concurso público para preencher 656 vagas distribuídas por 25 diferentes cargos em várias áreas, como engenheiros, arquitetos, médicos, assistentes sociais, administradores, entre outros. A justificativa era simples, a necessidade de atuação desses servidores especializados, mas também a ausência deles diante do elevado número de desocupação de cargos no período 2014 e 2022, motivada principalmente por aposentadorias e pedidos de desligamento de servidores.

O número de vagas no concurso que está em andamento, em momento em que o desemprego cresce, reflexo do momento econômico e da pandemia, poderia ser um atrativo extra. Porém, em algumas áreas, o número de inscritos ficou bem aquém do esperado, o que pode indicar que, ao final da seleção, a vaga seguirá aberta. Por exemplo, para o cargo de médico do trabalho, foram cinco inscritos para sete vagas, menos de um por vaga. Enquanto isso, na outra ponta, a disputa mais acirrada será para analista ambiental, que teve 79 inscritos para uma vaga.

Outros dados complementam essa percepção. Levantamento do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do RS (Sintergs) mostrou que as inscrições para cargos das áreas de Saúde e Agricultura tiveram redução de 70%. Na Saúde, o número de inscritos foi de 59.940 em 2014, quando foram oferecidas 1,5 mil vagas. Na seleção deste ano, foram 8.342 inscritos para 984 vagas. Assim, enquanto a quantidade de vagas foi 36,8% menor, a quantidade de inscritos despencou em 86%. Quando se observam os dados da Agricultura, a variação de inscritos foi de menos 70%, sendo que o número de vagas caiu pela metade.

A discussão sobre o serviço público também recai sobre o perfil atual dos servidores do Executivo: mulheres (62%), entre 41 e 45 anos (17%), com ensino superior (71%). E, quando se vira para o contexto geral, parte da preocupação fica visível no desafio de que o contingente de servidores públicos do Executivo é maior de inativos do que ativos. Enquanto a força de trabalho é de 127 mil na ativa, há outros 166 mil na inatividade, assim, 57% estão são de aposentados, além de 46 mil pensionistas. E os aposentados seguem crescendo. Nos últimos três anos, foram cerca de 2 mil novos inativos. Essa relação desequilibrada, que vem se acentuando nos últimos anos, é o principal argumento utilizado para justificar as atuais reformas administrativas e previdenciárias, iniciadas em 2019. Enquanto que o atual governo defende as mudanças, com discurso focado no equilíbrio das finanças públicas, representantes de servidores atribuem ao conjunto de mudanças dos últimos anos o desinteresse do ingresso no serviço público.

Secretário do Planejamento, Claudio Gastal reconhece e vivencia diariamente o desafio que representa a saída de servidores das suas funções. “A defasagem existe. É um problema de gestão de pessoal. Mas avançamos quando fizemos reformas, como na questão do gasto da previdência, que é mais elevado. Agora, temos que fazer a gestão de pessoal, sem colocar em risco o que alcançamos nesses últimos anos, como colocar os salários em dia”, enfatiza. Ao mesmo tempo, reconhece que, em alguns casos, as vagas não são atrativas, na comparação com a iniciativa privada.

À frente do Sintergs, Antonio Augusto Medeiros avalia que a falta de perspectiva, baixa remuneração e ausência de valorização pela sociedade ajudam na compreensão do pouco interesse para trabalhar no serviço público. “A pandemia deixou evidente a importância do serviço público, como da saúde, da pesquisa e da agricultura. A procura baixíssima de inscritos é um exemplo de como a carreira estadual se tornou pouco atrativa. Paralelamente, perdemos muitos talentos. Profissionais com alta qualificação que abandonaram”, ressalta Medeiros. Gastal defende que não se pode olhar apenas para a questão salarial. É preciso pensar sobre a carreira, que, segundo ele, ao lado da remuneração, são dois fatores que influenciam na atratividade do serviço público. “O Estado tem uma história de gestão cartorial. Pouco efetiva. Há uma grande fragmentação. Não é fácil a discussão sobre planos de carreira”, complementa.

Remuneração é um fator relevante para a atratividade das carreiras públicas

Nesse contexto de pensar em um serviço público mais atrativo, a remuneração é um fator relevante. Levantamento do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) mostrou que a renda dos servidores de ensino médio teve perda de 50% nos últimos sete anos, levando em consideração a falta de reajuste e a inflação acumulada.

O impacto disso fica mais evidente se pensarmos que parte desse período também foram de salários atrasados. “Os servidores estão há muito tempo sem reajuste, pelo menos uma boa parte”, reconhece o secretário de Planejamento, Claudio Gastal, complementando a questão dos atrasos, que se alongou por 57 meses. Atualmente, está em discussão no governo o reajuste geral dos servidores, que ainda não tem índice e nem data para entrar em vigor, mas, reforça Gastal, que está no horizonte do Executivo.

Presidente da Federação Sindical dos Servidores Públicos do Rio Grande do Sul (Fessergs), Sérgio Arnoud acompanhou de perto as mudanças propostas nas carreiras por meio de projetos discutidos e aprovados na Assembleia Legislativa entre o final de 2019 e início de 2020, a chamada Reforma RS, que envolvia revisão de benefícios, gratificações e contribuição previdenciária, entre outros. Para ele, o panorama descrito, na qual o volume de aposentadorias aumentaria e o interesse pelas vagas seria menor, era previsível. “Estão se confirmando todas as previsões que tínhamos feito”, resume. “O Estado está deixando de prestar serviços para, muitas vezes, contratar de privados ou repassar para empresas”, pontua. Ele reforça a importância da discussão salarial nesse debate. “Oito anos de congelamento salarial, enquanto que, além de não ter reajuste, ainda há o aumento dos preços. A conta de energia subiu 70% nesse período. Como sobreviver com o mesmo salários?”, questiona Arnoud.

Especialista em administração pública, o professor Aragon Érico Dasso Júnior, da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), discute o assunto do serviço de servidores públicos há algumas décadas. Para ele, a situação da precarização do serviço público não é recente no país e está diretamente ligada à decisão política. Ao contrário do movimento nacional, ele aponta que o Rio Grande do Sul está em uma posição diferenciada. Isso ocorre, na avaliação dele, pelas trocas de governo no comando do Estado. Recapitula que no Rio Grande do Sul as mudanças, muitas vezes chamadas de “reformas”, nas carreiras começaram na gestão de Antonio Britto, na época no MDB, ainda na década de 90 e vieram avançando, de maneira contínua, mas não uniforme.

Para o professor, a atual gestão está fechando esse ciclo reformista. “São alterações difíceis porque envolvem mudanças constitucionais e legislativas”, pontua, para, em seguida, criticar o fato de que essas reformas ficam restritas na relação Executivo e Legislativo. Em outras palavras, a decisão de fazer as reformas passa por quem estiver no comando do Piratini encaminhar a proposta e, aqueles que estiveram ocupando assento na Assembleia, decidirem sobre ela. E é exatamente nesse ponto que ele sugere a discussão, por exemplo, por plebiscito para algumas dessas mudanças. “O objetivo seria ampliar e gerar o debate”, enfatiza.

O especialista levanta ainda outro ponto para discussão, quanto aos desafios do serviço público, que é a possível proximidade entre público e privado. Também existe uma diferença entre os próprios poderes, como, por exemplo, o caso de que há cargos e carreiras mais atrativas no Judiciário, ao contrário do que ocorre no Executivo.

A diferença salarial e de vantagens entre poderes ficam em evidência no Estado, assim como no país, quando se compara a quantidade de servidores e o seu impacto. Apesar de ter vagas com vencimentos maiores, outros poderes também tem encarado o desafio de preenchimento de vagas. No caso do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), o segundo vice-presidente, desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, estima que o déficit de servidores segue em uma crescente. “Só saem”, desabafa. A situação deve começar a mudar agora, projeta, com a aprovação do plano de carreira, no final do ano passado, na Assembleia Legislativa. O projeto era uma demanda da categoria, que vinha sendo debatido há 30 anos. “Ele (o plano) propicia uma perspectiva de carreira, que até agora o nosso servidor não tinha. Antes, tinha que trocar de comarca, agora pode ficar toda a carreira em uma só”, cita.

A regulamentação também permitiu o chamamento de profissionais para o preenchimento de 400 vagas de técnico e 100 de analistas. “Nosso déficit era de 2,8 mil profissionais até esse chamamento”, enfatizou. Apenas do contingente de vagas, é preciso chamar um número maior de aprovados, prevendo a desistência. Foram 600 chamados, para o preenchimento de 400 vagas. “Ocorre o chamado abandono prévio. Muitos já passaram em outros \[concursou\] ou não têm mais interesse”, enfatiza. Nesse processo, cita uma das dificuldades, na comparação com a iniciativa privada: a perda de profissionais na área da TI (Tecnologia da Informação). “Perdemos muitos servidores nessa área por oportunidades melhores em empresas”, revela.

Dois caminhos, a mesma saída

Fernanda Pereira Breda e Dioneia Pitol Lucas têm trajetórias de vida bem distintas, tanto de profissão como de localidade onde moram. Fernanda é psicanalista, de 54 anos, que mora em Porto Alegre. Dioneia é atualmente professora universitária da Universidade Federal de Santa Maria, no departamento de Fitotecnia, tem 37 anos, e vive entre Santa Maria, onde trabalha, e a cidade de Cristal, onde mora a família. Mesmo assim, apesar de caminhos distintos, acabaram fazendo uma escolha similar: deixaram o serviço público estadual.

Fernanda foi servidora por 20 anos e, em 2021, optou por sair da função que exercia na área da saúde e passou integralmente para a iniciativa privada. “Exercia função como psicanalista, boa parte desse período em um ambulatório público, que são muito poucos no Estado. Por uma decisão de direção, esse serviço foi desmontado e fui deslocada de função. No ano passado decidi pela exoneração”, resume, brevemente, a trajetória pela administração pública estadual e municipal, uma vez que por um período esteve municipalizada. Para ela, o fato que mais pesou na decisão foi a motivação. “Fui me dando conta que não queria trabalhar mais daquele jeito.”

Dioneia trilhou um caminho diferente. Ela ingressou no governo do Estado em 2014, na época em que estava concluindo o doutorado, aos 29 anos. “Foi um período de muito aprendizado (ser servidora). Amadureci muito”, ressalta ela. À época, ingressou para o cargo de fiscal estadual agropecuário, com formação de engenheira agrônoma. Ela completaria sete anos na função, quando ingressou em outro concurso, desta vez na vaga de professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde está até hoje.

Mesmo com trajetórias diferentes, elas citam similaridades da experiência. O impacto da defasagem salarial, em função da ausência de reajuste, e do período do parcelamento ganha relevância. “Precisei financiar meu salário. Houve a retirada de benefícios. E, diferente do que pensam, não temos uma série de benefícios que um trabalhador privado tem”, comenta Dioneia, complementando que isso gerou desmotivação. No caso das atividades acadêmicas, ela diz ter reencontrado o sentimento de valorização. “Na época, não viam meu trabalho como o de promotor do bem-estar, mas de fiscal que iria prejudicar. Só cobrança. Nosso trabalho não era visto e entendido”, resume.

A discussão sobre plano de carreira que permita progredir

Se o cenário e a projeção são temerosos para algumas carreiras, algumas alternativas se vislumbram. Basicamente passa, além da remuneração, pela reestruturação. A discussão de um plano de carreira, que permita uma progressão, é uma das medidas apontadas. Antonio Augusto Medeiros, do Sintergs, ressalta que está em discussão com o governo do Estado a reestruturação de carreiras no sentido de tornar as funções mais claras e também mais atrativas. Porém, reconhece não ser uma medida fácil.

Dentro da mesma lógica, o secretário estadual do Planejamento, Cláudio Gastal, aponta o processo de gestão de pessoal. Segundo ele, pela primeira vez, o Estado tem uma subsecretaria voltada a esta temática. “Por muito tempo, o Estado não teve um olhar estratégico para as pessoas”, pontua Gastal. Porém, ele ressalta que há necessidade de outras mudanças, como a questão de definição sobre novas formas de contratação, acompanhando um processo da sociedade, e também de valorização de desempenho e questionar a estabilidade de algumas carreiras. “Hoje há muito menos um trabalho repetitivo. Também é preciso fazer cada vez mais avaliação de desempenho e premiar. Precisamos repensar.”

Para o professor Aragon Érico Dasso Júnior, da Ufrgs, as argumentações de revisão do tamanho vão contra ao que deveria estar no centro da discussão. “O discurso é hegemônico de que gastamos muito e errado. Não se discute a receita, apenas a máquina pública”, ressalta. E, complementa, que o discurso de estabilidade não é mais uma verdade máxima, uma vez que foram criados mecanismos que tornam possível a demissão.

Mas afinal, qual é o impacto desse déficit de servidores? De especialistas e gestores, a resposta é similar: melhor prestação de serviço. É essa atividade que impacta diretamente no dia a dia de cada um. Isso porque envolve desde a educação de uma criança a uma fiscalização agropecuária, que vai liberar alimentos. “A precarização do serviço público impacta diretamente na prestação do serviço. E nesse caso, a culpa recai no servidor”, aponta Antonio Augusto Medeiros. Na vice-presidência do Cpers, tradicional sindicato que representa os professores, Alex Saratt tem acompanhado o assunto de perto, em especial com as recentes discussões. Após três décadas, o magistério estadual passou por mudanças no plano de carreira. A medida definida pelo Executivo e aprovada na Assembleia provocou alterações na remuneração e reviu os chamados “benefícios” ou “gratificações”. “Precisamos recuperar algumas discussões, como a da valorização dos servidores e do serviço público. A pandemia, por exemplo, só deixou em evidência as carências de estruturas e o déficit, que vai recair sobre parte da população”, pondera Saratt, ao se referir às diferenças entre as escolas públicas e privadas.

Sobre a realidade das escolas, destaca alguns pontos de reflexão. Por exemplo, a baixa procura de profissionais e, consequentemente, o baixo interesse de permanecer na função, além, é claro, da pouca realização de concurso público. “Houve a autorização na Assembleia, mas o edital ainda não saiu. São oito anos sem concurso para magistério”, ressalta. Ao mesmo tempo, a contratação temporária aumentou. A estimativa do sindicato é de que há 35 mil professores concursados e 25 mil com contratos temporários.

“É necessário promover um debate amplo. Em primeiro lugar, há uma necessidade social da população que precisa desses serviços e que pode não ter acesso de outra maneira. Afasta o acesso (da população) e afasta o cidadão do seu direito.” Em segundo lugar, ele cita a questão dos servidores e suas carreiras, que não se sentem valorizados ou interessados em ficar nos cargos.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895