Antes dos shoppings

Antes dos shoppings

Em Porto Alegre, até bem pouco tempo atrás, os centros comerciais eram importantes espaços de comércio, convivência e serviços. Hoje mais esvaziados, ainda guardam interessantes histórias de vida

Por
Christian Bueller

Espaços profissionais compartilhados são comuns hoje em dia, os coworkings são exemplo disso, mas houve um tempo em que cada serviço era desenvolvido em um espaço próprio e específico. A partir da metade do século 20, em Porto Alegre, começaram a aparecer locais em que comerciantes e prestadores dos mais diversos segmentos puderam se estabelecer e partilhar dos mesmos clientes, interessados em produtos distintos. Maiores que as tradicionais galerias e uns degraus abaixo dos shopping centers, os centros comerciais servem como forma mais barata e segura de firmar um ponto de negócios.

O primeiro centro de compras da Capital, reconhecidamente o primeiro shopping da cidade e um dos pioneiros no país, foi inaugurado em 4 de dezembro de 1970 e se chamava Centro Comercial Porto Alegre. Prestes a completar 52 anos, o agora Shopping João Pessoa, no bairro Farroupilha, ainda congrega profissionais que conheceram a primeira fase do empreendimento. Desde 1985, Cesar Passos mantém um salão de beleza que, anos depois, incluiu o serviço de barbeiro, acompanhando uma tendência que mercado apontava. “Eu era cabeleireiro na lojas Renner e comecei lá dentro. Fizemos uma cooperativa com seis profissionais, alguns foram saindo e só eu fiquei, abrindo meu próprio estabelecimento”, lembra o proprietário do New Center Salon, atualmente com 60 anos. Nesta época, o local se chamava Centros Comerciais do Sul, que se tornou um shopping de fato em 1999.

Estabelecido como uma referência no ramo, Passos mantém mais de 20 funcionários e tem uma filial próximo à Praça da Encol, no bairro Bela Vista. A pandemia, no entanto, freou o crescimento, fato repetido à exaustão no comércio mundo afora. “Tivemos que parar totalmente, isso nos prejudicou muito. Perdemos clientes. Agora que alguns estão voltando”, lembra. A sua ideia é conseguir abrir outro salão em 2023. 

Com quatro pavimentos, 59 lojas satélite e três âncoras, ainda assim tem gente que continua a chamar o conglomerado de centro comercial. “Nunca deixou de ser, na verdade”, diz Passos.

Tradição que deixou cabelos de gerações no chão


Foto: Mauro Schaefer

Chegou a hora de cortar o cabelo, Jefferson Beurein nem pestaneja: é no negócio de Passos que ele e os filhos vão “dar um tapa no visual”. Quando criança, já frequentava o salão, levado pela mão da mãe. Hoje em dia, aos 50 anos, acompanha os pequenos Arthur, 13 anos, e Daniel, 10, no ponto situado no segundo piso do Shopping João Pessoa. O mais velho aprova o resultado do corte com um silencioso aceno de cabeça, enquanto o caçula, o primeiro a passar pelas tesouras, já transita pelos corredores com euforia típica da idade e franja ajeitada. “Tem casos em que atendo avô, filho e neto”, se orgulha o barbeiro e cabeleireiro.

Reinvenções na carreira após os 70 anos


Élvio Tartarotti e Maria Helena têm uma loja no Centro Comercial Protásio Alves, no bairro Chácara das Pedras. Foto: Mauro Schaefer

Autônomos por natureza, Élvio Tartarotti, 79 anos, e a esposa Maria Helena, 70, estão acostumados à batalha do dia a dia. Por três décadas, o casal manteve uma floricultura na Avenida do Forte. Mas, a partir de um pedido de retomada do imóvel pelo proprietário, precisaram se reinventar. “Tínhamos a possibilidade de vir para essa loja física, então viemos”, diz o sorridente senhor, se referindo ao Centro Comercial Protásio Alves, no bairro Chácara das Pedras. No local, há diversos serviços, como salão de beleza, estúdio de tatuagem e lan house. Para ter mais abrangência de clientes, o leque foi ampliado para brechó de roupas e sapatos, comércio de artigos religiosos e trabalho de costureira. Seu Élvio destaca as diferenças entre um espaço comercial individual e um compartilhado. “Aqui, a pessoa tem que entrar no centro comercial para chegar até a nossa loja”. 

Uma nova reinvenção foi necessária com a chegada da pandemia. “Tivemos que fechar e agora estamos tentando reagir. Caiu o movimento, foi complicado”, lembrou Maria Helena. Outra perda com a crise sanitária foi a inexistência de eventos sociais, como casamentos, formaturas e festas de 15 anos, que rendiam bons lucros ao casal. “Além dos arranjos de flores que fornecíamos para as decorações, um pouco antes de março de 2020, começamos com locação de roupas para festas. Tenho 80 vestidos, incluindo de noiva, guardados no segundo piso da loja até hoje”, lamenta a esposa de Élvio. 

Acostumados com a falta de clientes durante o turno da manhã, os dois aparecem no centro comercial no início da tarde onde “há mais chance” de conseguir vender algo. “Às 17h, o movimento já caiu, às 18h, então…”, comenta Maria Helena, sem terminar a frase. A loja ao lado abriu há cerca de mês, pois, assim como outros espaços ali, “não aguentaram o tranco”, como ela diz. Os dois esperam a fase ruim que ainda persiste passar para tentar novas mudanças de rumo. “Vamos levando. Imagina, como duas pessoas com mais de 70 anos vão recomeçar na vida?”, ela questiona.

Mesmo com o receio do público em arriscar fazer grandes festas que possam utilizar seus préstimos, os dois não tiram o sorriso do rosto. “Temos preços baixos, com peças para o brechó que vêm da família e de pessoas amigas” diz Maria Helena, que dispensa o lucro ao se deparar com pessoas que precisam mais que eles. “No período de frio, fizemos doações. Porque se ganhamos algo, podemos ajudar também”, ensina, enquanto maneja delicadamente um dos arranjos de flores que ainda aguardam por um destino. 

Sobrevivendo ao 7 a 1 que a pandemia deu


No Centro Comercial Zona Sul Tristeza, Valter Leopoldo Iaksch conta que passou por bons momentos em sua loja. Foto: Mauro Schaefer

Depois de 26 anos trabalhando no lado de fora do Centro Comercial Zona Sul Tristeza, na avenida Wenceslau Escobar, Valter Leopoldo Iaksch está com sua loja Munique no interior do espaço. Dedicado ao vestuário feminino, o estabelecimento passou por momentos áureos, mas depois da pandemia, o casal proprietário quase desistiu do negócio. “Foi muito difícil, tivemos que fechar as portas neste período”, conta. O aluguel muito alto fez com que ele e a esposa Vera Mallmann – de origem alemã, o que inspirou o nome da loja – trocassem de lugar. 

O dom de Vera com o corte e a costura os aproximou do ramo há três décadas. “Fazíamos roupas sob encomenda a pronta entrega, em frente ao antigo mercado Real, foi o nosso melhor momento. As pessoas faziam compras e aproveitavam para dar aquela passadinha na loja”, lembra Iaksch. Segundo ele, houve uma estagnação no bairro quanto ao desenvolvimento, potencializada com a crise sanitária que abalou o mundo. “Algumas coisas iam abrir, mas com a pandemia, aí o comércio não alavancou. A (venda pela) Internet bombou mais e as lojas pequenas sofreram mais”, comenta, resignado. A liberdade nos horários e a segurança são os pontos positivos de trabalhar em um centro comercial, diz o lojista. “Todos nós nos conhecemos aqui, além da vigilância profissional, nós também nos cuidamos”, pontua Iaksch.

O número de estabelecimentos diminuiu e boa parte do espaço, hoje em dia, é ocupado pela unidade Tudo Fácil Zona Sul. Nos dois pavimentos do centro comercial, há predominância de profissionais de saúde de especialidades diversas. “Tem filhos que seguem a trajetória dos pais”, lembra.

É contando com a clientela antiga que a loja Munique consegue se manter. “Não fosse por elas, não viria aqui para dentro, porque perdemos a visibilidade de possíveis novos clientes que acabam não entrando no prédio”, ressalta o empresário. Mesmo que tenha colocado um cartaz onde antes se situava a loja, ainda há clientes desavisados. “Hoje mesmo, uma senhora que sempre comprou com a gente comentou ‘procurei vocês e não achava’. Temos um público que vem de longe”, explica Iaksch. Atualmente com 69 anos, ele não pretende desistir de sua atividade tão cedo. “Enquanto conseguirmos sobreviver, estamos aí. Para quem estava ruinzinho, a pandemia foi ainda mais cruel. Mas seguimos tentando. Em altas e baixas, sempre superamos tudo, cortando onde podemos. E continuamos com o nosso diferencial, que é o atendimento personalizado.” O Centro Comercial Zona Sul Tristeza é a primeira galeria desta região na Capital.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895